“Retratos Fantasmas”: O resgate da magia dos cinemas de rua

Novo filme de Kleber Medonça Filho teve sua pré-estreia no Toronto International Film Festival

Eduardo Oliveira é advogado e amante de cinema

Retratos Fantasmas, o novo filme de Kleber Medonça Filho, teve sua pré-estreia na América do Norte no Toronto International Film Festival (TIFF) e foi escolhido como o representante do Brasil no Oscar 2024. O documentário discute como as transformações no espaço se relacionam com as memórias, sentimentos e a vida comum. O filme começa mostrando o apartamento em Recife onde o diretor vivia e fez várias gravações durante sua carreira. As mudanças graduais na vizinhança, grades e portões são mostradas como uma ilustração de transformações mais profundas nas relações sociais.

Para os fãs dos filmes anteriores de Kleber, um dos pontos altos em Retratos Fantasmas são os relatos de bastidores das suas primeiras produções. Nesse documentário, descobrimos que a inspiração para os cupins em Aquarius vem da casa vizinha ao apartamento, que teve o telhado consumido por cupins. Os famigerados latidos do cachorro em O Som ao Redor também fizeram parte da vida real do diretor no bairro de Setubal. Inclusive, ele confessa que em vários momentos teve que esclarecer a colegas que cenas mostradas em O Som ao Redor não eram direção de arte, mas simplesmente a vida real.

Embora Retratos Fantasmas trate de vários temas, o personagem principal são os cinemas de rua do Recife. Os cinemas são personificados e trazidos como personagens vivos. Cinema São Luiz, Art Palácio e Trianon são apenas alguns equipamentos culturais que Kleber buscou imagens preciosas de arquivos. O diretor mostra como a decadência dos cinemas de rua se relaciona com o abandono do bairro do Recife e a mudança do centro econômico da cidade para a Zona Sul. Entretanto, Retratos Fantasmas não é um filme que trata de questões locais do Recife. Pelo contrário, Kleber coloca que o centro de uma cidade pode lembrar muitas outras cidades. O filme vai do particular ao universal ao discutir como os cinemas de rua tiveram uma importância central no imaginário popular e como sua decadência é a morte de uma parte importante das cidades.

Acima de tudo, Kleber Mendonça Filho faz uma ode à arte e uma demonstração de como o aspecto onírico é essencial para a vida em sociedade – seja na poesia nos nomes das ruas: Saudade, Sol e Aurora, ou no amor ao carnaval. Retratos Fantasmas mostra que é através do elemento lúdico que se atinge a imortalidade. Por exemplo, o diretor volta ao mesmo apartamento depois de anos e ouve os latidos do cachorro do vizinho, que já havia morrido. Quando investiga a origem dos latidos, percebe que o filme O Som ao Redor está sendo exibido em rede nacional e os vizinhos estão assistindo. Se os filmes de ficção são os melhores documentários, como afirma o diretor, ele também demonstra que documentários podem ser também uma excelente forma de mexer com o imaginário do público.

Retratos Fantamas também traz uma ironia fina para fazer uma crítica velada a processos urbanos que transformaram o Recife. As farmácias que dominam a paisagem da cidade e estão em cada esquina. Os cinemas de rua que viraram igrejas. O shopping mall que foi batizado com o nome de um colégio religioso que ficava no terreno. Ao criticar a falta de reconhecimento do papel da cultura na sociedade atual, Kleber mostra personagens da vida real que davam vida ao universo dos cinemas de rua, como Seu Alexandre. Ao entrevistar personagens da vida comum, parece que Kleber está aplicando o método de história oral descrito por sua mãe em uma das passagens no início do filme.

Em resumo, a beleza do documentário está em mostrar cinemas que não existem exibindo filmes de fantasmas. No final de Retratos Fantasmas, o próprio diretor interage com um motorista de aplicativo que afirma poder ficar invisível sem sair do lugar. Parece uma metáfora perfeita para os cinemas de rua e outros prédios do Recife. Retratos Fantasmas oferece um momento raro de conexão com um mundo que parece estar desaparecendo. Como diria Paulo Bruscky, outro pernambucano, a arte ainda é a última esperança.

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