Nós que nos amávamos tanto

Sempre haverá quem queira jogar fora das regras do jogo democrático

Cena do filme "C'eravamo tanto amati" (Nós que nos amávamos tanto), de Ettore Scola (1974).

André Oliveira Rodolfo Marques são colunistas do Jornal de Toronto

Na abertura do livro O Crepúsculo da Democracia, a jornalista Anne Applebaum se declara de centro-direita, a favor da União Europeia e lembra que, no Ano Novo de 1999, reuniu os amigos em uma área rural da Polônia para comemorar a queda do comunismo, bem como a crença em uma presumida radiante nova era política. Estavam todos unidos, confiantes e felizes. Hoje, passadas duas décadas e com indisfarçável tom simultâneo de decepção e surpresa, Applebaum relata que muitos amigos aderiram a líderes autoritários como Viktor Orbán na Hungria, por exemplo, resultando no rompimento de amizades cuidadosamente construídas durante longo tempo.

Do relato pungente de Applebaum podemos inferir que, como bem lembrou Karl Popper, nunca haverá um Paraíso na Terra, nem tampouco um momento mágico em que a história terá chegado ao fim com a plena realização do bem-estar econômico e liberdade política entre todos. De certo modo, a autora chega a essa conclusão ponderando que os novos movimentos autoritários pregam a unidade e homogeneidade, pressupostos que estão em conflito com a diversidade e heterogeneidade que caracterizam as sociedades abertas no Ocidente democrático.

A extrema polarização política também tem dividido amigos e famílias no Brasil, criando grupos que não dialogam com quem pensa de modo divergente. O exercício da política pressupõe diálogo, compromisso e concessão na arena pública. Forja-se, inclusive, o conceito básico de público enquanto agrupamento humano. O ideal é que fosse possível encontrar pontos mínimos consensuais para um entendimento permanente entre as pessoas e entre estas e as instituições políticas. Mas, cabe indagar, qual seria essa agenda mínima consensual quando as próprias instituições da democracia são questionadas, como sucede, por exemplo, em alguns países em relação à legitimidade das decisões do Poder Judiciário?

O tema central do livro de Applebaum remete ao clássico filme italiano Nós que nos amávamos tanto (1974), dirigido por Ettore Scola, em que um grupo de amigos estava unido na luta contra o fascismo, mas, restabelecida a democracia (o sonho acalentado durante o duro período da guerrilha partizan), a unidade entre eles se desfez.

No plano ideal, o consenso mínimo seria construído em torno de valores democráticos que nos dizem que, se perdermos hoje, amanhã se pode retornar ao poder, certos de que todos os atores nutrem respeito mútuo pelos adversários e pela contínua repetição das chamadas regras do jogo. Como ensinou Douglass North no livro Instituições, mudança institucional e desempenho econômico, a repetição do jogo engendra cooperação entre as partes pela redução das incertezas, de resto, uma das finalidades perseguidas pelas instituições.

Enfim, não há uma resposta clara ou definitiva para o dilema proposto, já que provavelmente sempre haverá quem queira jogar fora das regras do jogo democrático, o que pode levar, como bem apontou Applebaum, ao fim de amizades consolidadas pelo desfazimento de ideais políticos compartilhados.

Sobre André Oliveira & Rodolfo Marques (39 artigos)
André Oliveira (à esquerda) é advogado com especialização em Direito Público, doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco e membro da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) desde 2009. Rodolfo Marques é analista judiciário, publicitário e jornalista; Mestre (UFPA) e Doutor (UFRGS) em Ciência Política, e professor de Comunicação Social na Universidade da Amazônia e na Faculdade de Estudos Avançados do Pará.

1 comentário em Nós que nos amávamos tanto

  1. Maria Louze Lamarao // 9 de setembro de 2021 às 5:49 pm // Responder

    Excelente texto.

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