Do Rio Vermelho a Batoche
André Sena é colunista do Jornal de Toronto
Da série “Flashes da História Canadense”
“Mostre-me um herói e eu lhe escreverei uma tragédia”, afirmou o escritor norte-americano F. Scott Fitzgerald, autor do famoso romance O Grande Gatsby, em uma coleção de ensaios chamada Crack-Up, publicada por ele em 1945. Esta provocação, de um dos maiores escritores de todos os tempos, cai como uma luva sobre o personagem histórico canadense, o líder Métis Louis David Riel. Dificilmente encontraremos na História do Canadá um vulto cujo heroísmo tenha sido mais discutido, e cujo resultado caminhe cada vez mais para o consenso geral de que Riel é de fato um dos fundadores da Confederação do Canadá, além de consolidador da Província do Manitoba, revolucionário e herói nacional.

O professor da Universidade de Alberta, Albert Braz, publicou em 2003 uma bela obra sobre este personagem histórico chamada The False Traitor: Louis Riel in Canadian Culture, onde levanta questões muito interessantes sobre as transformações que a biografia de Riel sofreu no imaginário histórico e social deste país. Primeiramente considerado apenas um subversivo revolucionário, acusado de traição à Confederação do Canadá, e diagnosticado por muitos como um doente mental e místico religioso, Louis Riel foi gradualmente tendo sua história restaurada e sua reputação reabilitada, tanto do ponto de vista político e jurídico, quanto no que se refere ao legado histórico de sua trajetória enquanto líder popular Métis.
Executado por enforcamento em 1885, Riel defendeu os direitos dos Métis no Canadá em vários momentos da história deste povo tão estruturante para a construção de um mosaico nacional por aqui. Os Métis são um conjunto etnográfico e cultural incontornável na História canadense, e devemos compreendê-los para muito além do que este termo sugere (mestiços). Eles são o produto demográfico e sobretudo sócio-cultural de uma conexão violenta mas também histórica e vivencial entre comerciantes de pele franceses e escoceses (principalmente homens) e dos povos Ojibwa, Salteaux e Assiniboine (principalmente mulheres). Apesar de todos os desafios que enfrentaram desde os primórdios da Confederação de 1867, os Métis hoje são oficialmente reconhecidos pela Constituição de 1982 como um dos três grandes conjuntos civilizacionais autóctones do Canadá.
Louis Riel é definitivamente o grande símbolo histórico deste povo, tendo nascido em 1844 no Assentamento do Rio Vermelho, localizado nas proximidades de Winnipeg. A época em que Riel viveu, especialmente a partir de seus 25 anos de idade, foi definitivamente um ponto de inflexão na história canadense, sobretudo a partir da década de setenta do século XIX. Juntamente com a proclamação da Confederação do Canadá por John A. Mcdonald em 1867, somava-se um projeto de expansão e consolidação territorial rumo ao Oeste e ao Pacífico, que tornava a região que hoje chamados de o complexo das pradarias (Manitoba, Saskatchewan e Alberta) um espaço topográfico estratégico e essencial para os planos de Ottawa.
A inauguração da carreira política e revolucionária de Riel se dá exatamente quando a estruturação do Canadá confederado por Macdonald passa por negociações importantes com um ator econômico que historicamente dominou e dinamizou a produção comercial e exploratória no país, desde tempos coloniais: a Companhia do Rio Hudson. As pradarias, cujas riquezas sempre passaram pela intervenção econômica hudsoniana, agora deveriam tornar-se terras do Estado canadense em construção. Desnecessário dizer que as negociações entre a poderosa companhia e os tomadores de decisão de Ottawa não passavam por nenhum canal de diálogo com a comunidade Métis, o que tornava sua agenda e interesses absolutamente ignorados por transações bilaterais, que excluíam da mesa de negociações o principal tecido social e demográfico da região.

Isto não era algo exatamente novo. Peter Charlebois, um dos grandes biógrafos de Riel, relata na obra The Life of Louis Riel a existência de petições feitas por Métis, e ignoradas pela Coroa Britânica desde 1860. Direitos de cultivo, assentamento e propriedade, construção de igrejas e dos mais diversos aspectos relativos ao desenvolvimento dos Métis nas pradarias nunca foram exatamente uma prioridade para os governantes da “América do Norte Britânica”, e o mesmo se produziria no período pós-Confederado; não sem a resistência institucional, política e até mesmo militar dos Métis, e da liderança de figuras como Louis Riel.
Há aqui um importante ponto complementar: a valorização das pradarias a partir dos projetos de expansão da Confederação atraiu para a região um contingente inédito de imigrantes protestantes de Ontário, o que produziu conflitos de natureza política, linguística e também religiosa, em uma região onde o catolicismo Métis predominava juntamente com a língua francesa, em um rico e complexo emaranhado cultural e tradicional, que agora se via na obrigação de ceder ou dividir instâncias e espaços com uma elite econômica protestante não necessariamente tolerante. Isto trouxe uma enorme quantidade de instabilidade para a região. Louis Riel surge como um líder carismático importante exatamente neste momento, entre as décadas de 1870 e 1880.
A História e as dinâmicas das relações de poder em um Canadá em construção exigiram de Louis Riel uma postura inicialmente conciliatória e futuramente radical. Tanto na primeira quanto na segunda, Riel teve de lidar com desafios e incidentes que marcaram a sua vida e a sua trajetória política. Entre fuzilamentos que ordenou como líder do Governo Provisório de Manitoba até apelos da comunidade Métis na hoje histórica cidade de Batoche, no vizinho Saskatchewan, Riel teve de lidar com um sem número de diferentes projetos e desenhos de poder afim de proteger os direitos de seu povo.
O envio de tropas confederadas para a região que o próprio Riel introduziu à Confederação (Matitoba é a quinta província a aderir ao Canadá) lhe impuseram um exílio de anos nos Estados Unidos, onde sua saúde emocional sofreu imensos abalos. Apesar do exílio ao sul da fronteira, Riel nunca deixou de visitar o Canadá, tendo inclusive vencido, à distância, duas importantes eleições parlamentares entre os anos de 1873 e 1874, enfrentando forte oposição e colecionando inimigos de toda sorte. Trata-se de fato aqui de uma personalidade singular. Apesar de sua conexão regional com a cultura e a autodeterminação Métis, Riel sempre soube sinalizar para Ottawa que sua lealdade também era ao Canadá. Ele defendeu o país militarmente, por exemplo, quando ocorreram tentativas importantes de invasão, orquestradas por milícias fenianas vindas dos Estados Unidos entre 1866 e 1871.
Porém, será em Batoche, entre os anos de 1884 e 1885, que ele desempenhará o último ato de sua intensa e meteórica carreira política e epopeia revolucionária, deixando a vida para entrar na História. Esta cidade de Saskatchewan foi um ponto de chegada importante para a população Métis, a partir de fluxos migratórios no complexo das pradarias em busca de melhores condições de vida. Contingentes Métis chegaram a Batoche afim de estabelecerem-se como uma comunidade vibrante, oriunda de Manitoba, onde a presença protestante se intensificara e problemas de natureza econômica se tornaram graves, especialmente em função do declínio da caça ao búfalo e do comércio de peles, um modo de produção que alimentou comunidades Métis por séculos.
Batoche definitivamente surge na história dos Métis como uma espécie de Terra Prometida, que terá sua utopia interrompida pelo endurecimento de medidas governamentais que gradualmente vedaram aos Métis seu modo de vida e sustento, seja no acesso à terra e ao cultivo, seja em seus direitos de sobrevivência e exploração da região. Louis Riel será então convidado pela comunidade de Batoche a resistir a opressão de Ottawa, reforçando desta maneira a autonomia política e econômica dos Métis em um território que sempre foi compreendido como deles: as pradarias. O convite que o povo de Batoche fez a Riel para liderar a revolução Métis aparece imortalizado nos versos da famosa canção de Bill Gallaher, The Last Battle:
“Oh come Riel, we’ll make a stand
Here at Batoche beside the river
Oh never mind their Gatling guns
If we lose this time, we’ve lost forever”
A frágil “República” de Batoche, o sonho de um Estado Métis independente sob a liderança política de Louis Riel e comando militar de Gabriel Dumont, desapareceu em poucos dias de uma verdadeira operação de guerra montada pelo Governo de Ottawa, entre 5 e 12 de maio de 1885. Capturado, Louis Riel foi julgado e condenado à morte. Apesar dos pedidos de clemência apresentados pelo próprio júri que o condenou, a decisão da magistratura pela execução demonstra a necessidade de fazer de Riel um exemplo para aqueles que se opusessem à obra política da Confederação.
Curiosamente, é exatamente em nome dessa mesma Confederação – que hoje chamamos simplesmente de Canadá – que se reivindica a memória de Louis Riel como personagem nacional canadense. Em Manitoba e em várias Províncias do país se comemora o Louis Riel Day toda terceira segunda-feira de fevereiro. Os Métis preferem relembrá-lo na data de sua execução, tendo no dia 16 de novembro a efeméride mais importante. O Fundador de Manitoba e revolucionário canadense aparece, nesse sentido, como uma curiosa e interessantíssima interseção entre o particular e o geral, um padrão histórico que parece ter produzido este gigantesco, controverso e poderoso país.
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