(Trans)formação é a chave contra o preconceito
Bárbara de la Fuente é atriz, produtora e roteirista de cinema
Joffre Faria Silva é cineasta e roteirista
Savannah Burton é atriz e atleta canadense
Os curtas-metragens possuem um poder único de apresentar e discutir assuntos importantes num curto espaço de tempo. Apesar de não serem apresentados nas salas comerciais, os curtas viajam o mundo passando seu recado, através de inúmeros festivais de cinema.

Locação do filme “The Kiss”. Foto: Valter Vilar.
Filmado numa escola histórica de Toronto, o filme The Kiss trata de preconceito, moralismo e sexualidade. Reunimos as atrizes Savannah Burton e Bárbara de la Fuente e o diretor Joffre Faria Silva para um bate-papo:
Jornal de Toronto – O filme The Kiss tem sido super bem recebido nos festivais; em grande parte pela bela produção, direção, fotografia e atuação de todos. Mas, além disso, há o tema, que é muito importante para os dias de hoje. Como tem sido a reação do público?
Savannah – Estou encantada que o filme esteja sendo exibido em vários países ao redor do mundo. É uma história importante sobre aceitação e revela o que é ser LGBT na década de 1950. Ver uma história como esta nesse período é rara. Transexual nem sequer era uma palavra naquela época. Os transexuais mantiveram suas identidades verdadeiras escondidas do mundo, sem nunca terem a chance de ser quem eram, o que é algo terrivelmente triste.
Joffre – Penso que a recepção positiva do filme tem a ver com a forma como o roteiro trata uma questão delicada e de extrema importância. Embora a história se passe nos anos 50, ela possui toda uma estrutura que reflete a realidade dos nossos tempos.
Bárbara – O comentário em comum do público é que é um assunto que precisa ser discutido, precisa ser mostrado. Acho que o fato do filme se passar 60 anos atrás faz as pessoas perceberem que não mudou nada. Como dizia Belchior, “ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais”.
Savannah – Hoje é um pouco melhor do que era na época, pois há mais e mais pessoas saindo do armário, o que torna tudo mais fácil para as gerações futuras. Se ver representado na vida pública, ter nossas histórias contadas e sermos mostrados em todas as facetas da vida é crucial para a aceitação e compreensão social.
JdeT – Vocês acham que a questão homossexual (e transexual) é ainda um tabu?
Bárbara – Sim, ouço as pessoas falarem que são modernas, que aceitam as diferenças, mas essa posição aberta é muito da boca pra fora. Sexualidade é um assunto que as pessoas não discutem, ficam envergonhadas de falar a respeito. Acho que a falta de informação é o que cria esse tabu.
Joffre – Certamente. É um tabu porque lida com um assunto que ainda é desconhecido por muitas pessoas. Desconhecido talvez não seja a melhor palavra nesse contexto, mas é com certeza um assunto que muitos preferem ignorar ao invés de investigar com maturidade e compreensão. Ouve-se muito a expressão “não me importo que ele (ou ela) seja gay, contanto que o seja entre quatro paredes”. Acredito que essa maneira de pensar exemplifica da melhor forma como muitas pessoas preferem ver, ou não ver, o homossexual.
Savannah – Infelizmente ainda existem países no mundo onde é ilegal ser gay ou transexual, e onde a punição é a morte. Mesmo no Canadá, somente neste ano de 2017 que foram criadas proteções federais para transexuais – adicionadas ao código de direitos humanos (Bill C-16). Este fato é algo que surpreende e, infelizmente, passou despercebido pela maioria da população. Ainda há grandes barreiras para os transexuais no que se refere ao emprego, ao acesso à saúde e habitação.
JdeT – Há diferença entre a homofobia no Canadá e no Brasil?
Bárbara – A homofobia existe nos dois países, sem dúvida. Acho que no Canadá ela é politicamente correta, as pessoas não declaram esse preconceito.
Joffre – Dizer que não existe homofobia em qualquer lugar do mundo seria uma grande farsa. A homofobia está presente sim. A questão é que ela surge em pequenas ou grandes proporções, diferenciada pela educação e instrução do homofóbico. No Canadá, há uma força extremamente positiva e eficaz lutando contra a homofobia e criando condições para que as pessoas entendam melhor a questão e mudem sua maneira de pensar. Ainda há um longo caminho a percorrer; porém, os frutos são palpáveis. Já no Brasil, embora tenham acontecido grandes melhorias nessa área, muito ainda precisa ser feito.
Bárbara – No Brasil, o culto do machão torna a homofobia violenta. O Brasil tem um índice altíssimo de assassinatos de homossexuais (um dos maiores do mundo), o que é muito triste.
Joffre – Essa estatística é deprimente e nos coloca diante da necessidade de uma mudança radical.

Barbara de la Fuente (como Mrs. Tancredi, mãe do aluno Paul), David Emanuel (como professor Baker) e Denise DeSanctis (como a diretora Williams). Foto: Valter Vilar.
JdeT – No filme, a mãe e a diretora são, de maneiras diferentes, vítimas da pressão social, que as impedem de agir como gostariam. De que maneira, hoje, vocês sentem essa pressão?
Joffre – Essa pressão é sentida por qualquer pessoa que se engaja na luta contra o preconceito e a discriminação. Eu particularmente sinto essa pressão e tento achar uma forma de lutar contra ela através daquilo que escrevo ou crio. Muito da minha arte, seja através de roteiros ou na direção de um curta como o The Kiss, traz um chamado a essa mudança, a fazer algo em prol da luta contra o ódio e a indiferença àqueles que se enquadram em classes minoritárias.
Savannah – Ser transexual é, em si mesmo, se confrontar com as pressões sociais ou as “normas sociais”. É parte da razão pela qual há, ainda nos dias de hoje, um tratamento público tão horrível para os transexuais. Há uma falta de compreensão de quem são os transexuais e as pessoas temem o que não entendem.
Bárbara – Tudo que é diferente assusta, é visto com maus olhos. Infelizmente, a sociedade ainda vê como “normal” só o heterossexualismo, então quem não pertence a esse grupo, acaba sofrendo a pressão para mudar. Quando pensei no filme, queria retratar que, apesar de vivermos em 2017, reproduzimos a mesma sociedade de nossos pais e avós. Ainda existem pessoas que têm medo de se declararem homossexuais, de se assumirem como são e, nesta constatação, vemos o quanto essa pressão é forte.
Savannah – Um dos maiores obstáculos que os transexuais enfrentam, e estão tentando combater, são os estereótipos negativos e falsos que têm sido mostrados na mídia há décadas. Os transexuais têm sido retratados como vítimas, vilões ou alguém a ser zombado. Precisamos desesperadamente ter uma representação positiva na mídia.
Leia também “Quando muito, só por um beijo”, crítica do filme escrita por Alexandre Dias Ramos.
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