Por uma Véspera complexa e singular

Leia a resenha de Isabel Arruda na Coluna “Canoa Cultural”

por Isabel Arruda

Véspera é um dos livros mais bonitos e sensíveis que li nos últimos tempos, sem dúvida nesse ano de 2022. Essa obra me atravessou em um momento que estava bem aberta a ela.

Eu tenho pra mim que livros nos chegam quando têm que chegar, sabe? Às vezes as palavras não encaixam, o enredo demora pra se fazer presente. Penso que não era o momento daquela mensagem se fazer presente. Pois Véspera chegou em mim de forma arrebatadora.

Li o aclamado Tudo é Rio, da mesma autora, Carla Madeira, e, quando terminei, não pensei duas vezes; ainda tomada pela emoção do livro, senti que precisava conhecer mais a fundo o trabalho dessa escritora que já havia ganho meu coração todinho.

Na mesma noite comecei Véspera.

Não tinha lido uma resenha ou ouvido muito sobre o livro. Não tinha expectativas. Que bom, pois pude me jogar em queda livre em sua trama. Seu enredo me envolveu do começo ao fim.

Véspera, como o nome já sugere, me relembrou que a vida é um acúmulo de vésperas. Nada é fato isolado. Nossa biografia vai sendo construída de véspera em véspera, dia após dia.

O livro começa com uma cena que deixaria qualquer mãe (ou pai) com o coração em pedaços, e também com uma certa raiva da personagem, logo assim de início. A personagem Vedina, que, em um impulso, tomado por uma raiva e cegueira ardente, toma uma decisão que mudaria o curso de sua vida – abandona o filho de 5 anos na calçada de uma avenida movimentada. Abre a porta, deixa o menino, e apenas dirige em frente, indo embora. Logo depois cai em si e, desesperada, tenta retornar para achar o menino, que não está mais lá – coração dilacerado e angustiado.

Em um recorte entre passado e presente, a história vai se revelando e vamos conhecendo, lentamente, o percurso até chegar naquele fatídico momento. A história gira em torno de uma família despedaçada – um pai alcoólatra, uma mãe religiosa e controladora e seus filhos gêmeos.

Antunes, o pai, em uma tentativa de provocar a esposa, registra os meninos após o nascimento como Abel e Caim, reproduzindo a história bíblica. Conforme os meninos vão crescendo, suas diferenças e singularidades viram abismo e o apelo da mãe para que sejam iguais acaba construindo muros e uma distância, irreversível, entre a família.

Véspera remexe e nos inunda em um misto de emoções. Ora raiva, ora compaixão, ora angústia. Decisões pautadas no desespero e impulso geram arrependimento e culpa, sentimentos que seus personagens carregam pelos seus dias, como um peso que os engole.

Carla Madeira usa as palavras de uma maneira brilhante – próxima e poética. Sensível.

Sua obra, complexa e singular.

Minha sugestão: abra o livro e se deixe levar pelas vésperas dessa doída e envolvente história.

Isabel Arruda é escritora e autora de A Despedida de Quem Fui.

Você pode adquirir o livro Véspera, de Carla Madeira, pelo website da Canoa Cultural.

“Como se chega ao extremo?

Vivendo.

Sal demais, nenhum sal.

Um dia após muitos outros dias. É longo o caminho.

Chão acidentado,

desprezo,

declives,

quedas.

A descida até o lugar onde somos capazes de tudo é, por vezes,

um desmoronamento lento misturado à banalidade dos dias.

Ou abrupta avalanche.

 

E se a vida nos leva com ofensas, uma atrás da outra,

é bom que saibamos, por compaixão, que não há quem não vá.

Vamos.

E é por isso que não se trata de uma compaixão desinteressada.”

(Carla Madeira)

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