A mania brasileira de atirar cadeiras sem culpa

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Meme criado pelo Things By Dru.

José Francisco Schuster é colunista do Jornal de Toronto

A imprensa canadense noticia que uma jovem de 19 anos lançou uma cadeira da varanda de um apartamento no 45º andar de um edifício de Toronto sobre a rua, quebrando-a em pedaços quase irreconhecíveis, mas por milagre não atingindo ninguém. Tudo registrado em um vídeo que viralizou na internet. Todos começaram a se perguntar quem teria feito tal absurdo, até que a mulher se entregou à polícia. Gira a roleta e, tendo o Canadá imigrantes de tantos países do mundo inteiro, a nacionalidade da sem-noção é… brasileira. Lei de Murphy não falha.

Eu, como tantos brasileiros, me senti profundamente envergonhado por esse vexame para a comunidade. Como querer fazer crescer no Canadá o respeito pelo Brasil e seu povo com fatos como este? Vontade de me enfiar em um buraco. Contudo, não foram todos que sentiram assim, já que a segunda parte da história é tão surpreendente como a primeira: a própria autora dessa maluquice, que poderia ter matado uma ou mais pessoas, foi à sua audiência na corte não só tranquila como até sorridente, como se fosse um dia como qualquer outro. Ainda teve tempo de passar batom e ajeitar o cabelo no elevador antes de ser confrontada pela imprensa e, depois disso, ainda comprar um café. Business as usual.

Imagem do vídeo de celular em que Marcella Zoia atira uma cadeira da janela de um apartamento no centro de Toronto.

Saem chocados desta história, portanto, apenas estrangeiros como os canadenses e somente parte dos brasileiros. Fica a impressão de que há muitos brasileiros como a autora, que tomam esta insanidade como algo sem importância, uma brincadeira sem maiores consequências, e bola pra frente. À justiça, a jovem alegou ter perdido o mínimo de senso por “pressão do grupo”. Como certos grupos de Whatsapp, podemos comparar, onde a lógica mais básica passa longe. Punição? Até o momento, apenas ser “vigiada” pela mãe – uma das responsáveis por ter feito da jovem o que ela é. Sem considerar que teve seus 15 minutos de fama e um fantástico aumento de seguidores nas redes sociais. Quem sabe seja até convidada para o BBB.

É possível que este anestesiamento da consciência esteja vinculado ao acostumar-se com o atirar de cadeiras que eleitores e seus gurus profissionais, os políticos e juízes, praticam todos os dias no Brasil. Atiramos cadeiras sem dó – e os políticos e juízes com uma pontaria treinada anos a fio – nas leis trabalhistas, na Previdência, na Amazônia, nos indígenas, nos direitos humanos, nos direitos constitucionais, nas minorias e assim por diante. É só uma brincadeira, não é? É engraçado, não é? Acaba tudo em pizza, não é? E começamos a achar natural Brumadinhos, Marianas, Marielles, malas de dinheiro, helicópteros de cocaína, auxiliares de políticos milionários e tanto mais. Responsáveis riem do judiciário, que está mais preocupado em atirar cadeiras no teto salarial e certos de que ele não vai atrapalhar a vida de quem é seu parceiro no golfe. Igualzinho à jovem, o CEO da Vale não aparece arrependido à imprensa, mas afirmando que a empresa é uma joia e não pode ser condenada.

Então, se querem saber quem morre no final do filme, adianto que não são os bandidos: são as vítimas das barragens, os meninos do Flamengo, Marielle e Anderson, Amarildo, indígenas e tantos outros que fazem falta e que ficarão para sempre na nossa memória. E melhor olhar para cima, pois neste momento mais uma cadeira pode estar caindo na sua direção, enquanto da varanda gargalham.

Assista a reportagem do CityNews Toronto:

Sobre José Francisco Schuster (80 artigos)
Com quase 40 anos de experiência como jornalista, Schuster atuou em grandes jornais, revistas, emissoras de rádio e TV no Brasil. Ao longo dos últimos 10 anos, tem produzido programas de rádio para a comunidade brasileira no Canadá, como o "Fala, Brasil" e o "Noites da CHIN - Brasil". Schuster agora comanda o programa "Fala Toronto", nos estúdios do Jornal de Toronto.

1 comentário em A mania brasileira de atirar cadeiras sem culpa

  1. Lembrei-me do cangaceiro Lampião, que gostava dos holofotes, posando para fotos.
    Narcisistas, no sentido real do termo e não no comumente usado nas redes, embora a moça aí se encaixe nos dois contextos.
    A comunidade aí no Canadá fica vexada; tanto aqui no Brasil como aí no Canadá e nos quatro cantos do planeta, nós brasileiros torcemos para que brasileiros sérios ganhem notoriedade.

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