Henry Morgentaler: entre aplausos, vaias e lutas

André Sena é doutor em História Política pela UERJ
Da série “Flashes da História Canadense”
A história canadense contemporânea é marcada por personagens que fizeram do Canadá sua nova terra, e buscaram dar ao país contribuições políticas, sociais, culturais e científicas de todo tipo. O médico e ativista pelo direito ao aborto no Canadá Henry Morgentaler talvez seja um desses personagens históricos recentes (ele faleceu em 2013) que reúne todas essas condições em uma personalidade singular.
Nascido na Polônia em 1923 de pais judeus, Morgentaler e toda sua família sofreu as agruras do holocausto nazista, tendo sido confinado no sinistro Gueto de Lodz. Após a destruição do gueto pelos soldados de Hitler, o então jovem médico foi transferido para os dois dos campos de concentração mais sombrios da Segunda Guerra Mundial: Auschwitz e Dachau. Tendo conseguido sobreviver aos horrores do que conhecemos como Shoah, Morgentaler chegou ao Canadá 10 anos após o fim da guerra, estabelecendo-se como médico em Montreal.
Sua carreira clínica seria atravessada por seu ativismo pelos direitos humanos, especialmente pelo acesso da mulher a serviços de saúde e pelo direito de mulheres decidirem sobre seu próprio corpo e gravidez. O tema é sensível, mas também merece ser discutido historicamente. Trata-se aqui de compreender o legado de Henry Morgentaler como um médico que advogou por um direito das mulheres, mas nunca pela banalização desse direito, ou pela transformação da interrupção da gravidez em um ato corriqueiro.
A luta de Morgentaler teve custos seríssimos para a sua vida, o que incluiu ser processado um sem número de vezes pelo Estado, ser preso em Montreal, e ter sua clínica médica explodida em Toronto, no início dos anos 1980. Já no ano de 1967, como presidente da Fraternidade Humanista de Montreal, o médico liderou uma série de pressões para a formação de um Comitê Parlamentar de Saúde que estudasse a possibilidade da suspensão da proibição ao aborto no Canadá, algo que só ocorreria 21 anos depois.

Morgentaler dedicou seus anos de clínica entre a década de 1960 e 1970 à construção de uma cultura médica de planejamento familiar, ainda um tabu em qualquer sociedade ocidental da época. Conduziu cirurgias de vasectomia por anos a fio, além de ser um médico pioneiro na recomendação do DIU e das pílulas contraceptivas por aqui. De fato, Morgentaler foi um dos responsáveis pela introdução desse debate no Canadá, mas também pela implementação de medidas médicas efetivas que garantissem a instalação de um ambiente social e cultural favorável à novidade daqueles anos: a contracepção.
O médico imigrante canadense ainda hoje é objeto de devoção da parte de setores mais progressistas, e alvo do ódio de grupos conservadores canadenses, especialmente porque discutia a questão do aborto com muita racionalidade e naturalidade. Chegou a declarar publicamente que realizou 5.000 abortos no Quebec, de mulheres desesperadas pelas mais diversas razões pela interrupção da gestação. Considerava isso um direito exclusivamente feminino, o que lhe valeu a pecha de “assassino” por grupos e instituições religiosas.
Entretanto, os setores mais progressistas canadenses compreendiam a luta de Henry Morgentaler como algo absolutamente legítimo. Ele recebeu inúmeros prêmios, inclusive a Ordem do Canadá, uma das mais prestigiosas comendas do país. Apesar de inúmeras dificuldades, ameaças de morte e atentados que sofreu ao longo da vida, as pressões exercidas por ele foram aos poucos ganhando aliados a partir de 1969, como o então Primeiro Ministro Pierre Trudeau, que ao propor uma revisão do Código Penal canadense acabaria levando o país a reformas sociais importantes, como a descriminalização da homossexualidade, o direito a receber informações sobre contracepção, ter acesso à medicação contraceptiva e a autorização do aborto ‘em determinadas circunstâncias’.
Morgentaler prosseguiu desafiando o establishment político e jurídico canadense entre 1974 e 1988, abrindo clínicas particulares (não clandestinas!) de aborto em Montreal, Toronto e Winnipeg. Debaixo de intensa repressão policial, indiciamento, encarceramento e processos em províncias importantes como Ontário, o médico jamais desistiu de defender o argumento de que a interrupção da gravidez era não apenas um direito exclusivo da mulher em termos decisórios como também uma questão de saúde pública.
A suspensão da proibição do aborto pela Suprema Corte do Canadá em 1988 foi possivelmente influenciada pela trajetória de Henry, na medida em que os magistrados canadenses entenderam que proibir a interrupção da gestação configurava uma violação a Carta Canadense de Direitos e Liberdades (Canadian Charter of Rights and Freedoms), aprovada seis anos antes no país.
Embora cada um de nós perceba esse tema espinhoso e delicado de forma muito particular, a história de Henry Morgentaler é um interessante retrato de uma época em que novos temas e novas agendas estavam em jogo e faziam parte do processo de modernização de um país imenso e complexo como o Canadá. O legado de Morgentaler, gostemos ou não, é uma parte inalienável deste processo histórico e social.

É sempre uma honra poder desfrutar de seus escritos e agregar conhecimento.
Uau! esse homem escolheu a missão de ser ativista dos direito reprodutivos. Paradoxal e ao mesmo tempo, necessário numa sociedade carregada de dogmas, tabus e tantas outros padrões de comportamentos.
Tenho grande admiração pelo grande historiador e pensador que você se tornou André. Vou concordar e discordar em parte dos focos deste artigo. Assim vc vive a democracia, concordar e discordar (com seus respectivos fundamentos) com respeito.