A alegria do pertencimento
José Francisco Schuster é colunista do Jornal de Toronto
O imigrante se sente um desbravador, mas o Canadá, um país do G7, não tem nada, convenhamos, a ser desbravado. Na verdade, o desbravamento que ocorre com a imigração é de nós mesmos, encontrando realidades muito diferentes a nos desafiar, às quais temos de aprender a nos adaptar. Temos que aprender inclusive o básico, até a nos vestir, usando roupas que jamais necessitamos anteriormente em nossas vidas.
Depois, o desafio da língua, e usá-la cotidianamente com pessoas que não têm o nosso idioma nativo como alternativa, como os professores de inglês no Brasil. É descobrir que palavras em inglês que todo brasileiro sabe não funcionam aqui: não se vai no shopping, se vai ao mall; e se você convidar um canadense para andar de skate, ele virá com seus patins de gelo. Também descobrir que cursos de inglês não descem a minúcias que um dia você precisará aqui: como se pede um ralo de pia? Ou, o que são os tais bed bugs?
Depois, a adaptação aos costumes locais, diferentes até na forma de cumprimentar, sem os dois ou três beijinhos, muito menos tocar em crianças e bebês que não sejam seus parentes, mesmo que de forma carinhosa. Outra novidade é o rigoroso compromisso com o horário, mesmo em coisas não sérias, como um programa de TV: pode ter certeza de que no Canadá começam pontualmente na hora cheia ou nos 30 minutos, muito diferente do que nos acostumamos no Brasil, onde a novela das 8 começa só às 9h25min – isso se não tiver futebol no dia, pois aí muda.
O desbravamento continua em nível profissional, pois instituições de ensino que não sejam canadenses ou, vá lá, americanas, são, em regra, ilustres desconhecidas por aqui. Assim, seu suado diploma obtido na USP ou na FGV geralmente não causam emoção alguma a recrutadores. Assim, toda a sua vida tem como que recomeçar do zero, com sua tentativa de se adaptar a uma nova cultura e com o trabalho de ter que ensinar a cada um no caminho o que você tem a oferecer, o que significa certas vezes ter que inclusive mostrar no mapa onde fica o Brasil, pra começo de conversa. Alguns vivem a chamada Síndrome do Impostor, onde queremos parecer integrados a um lugar de onde realmente não fazemos parte.
Contrapondo-se a esta tentativa diária de mergulhar e inserir-se em uma nova cultura, um alívio é participar de eventos comunitários, onde se pode relaxar neste sentido. Com a pandemia e seus longos lockdowns, que vêm e voltam, são dois anos que esta válvula de escape esteve praticamente descartada, o que faz falta especialmente para quem não tem ninguém com quem conversar em português em casa.
É uma alegria, depois de toda a luta descrita acima, encontrar alguém que saiba completar o verso “Quem um dia irá dizer…”. A outra pessoa tem toda uma referência cultural de quem é Renato Russo, Legião Urbana, da história de Eduardo e Mônica, etc. Tentar explicar tudo isso a um canadense seria tão complicado que até desanima, mesmo que você esteja paquerando a criatura. Por isso, em cada show, ver a galera brazuca cantando em coro as músicas, conhecendo a letra inteira, traz um sentimento de pertencimento e de identidade cultural muito agradável. Enfim, um momento de sentir-se em casa, de estar rodeado de pessoas com o mesmo background, que tem as mesmas referências. Por isso, você acaba cantando até músicas que podem estar fora de sua playlist, como “Boate Azul”. Você até pode não curtir, mas que já ouviu um dia, já ouviu. Faz parte da sua bagagem.
Neste contexto, nada mais catártico do que o “grand finale” dos shows da Roda de Samba de Toronto, com o hino da identidade brasileira: “O que é, o que é”, do Gonzaguinha. “Eu sei que a vida deveria ser bem melhor e será / Mas isto não impede que eu repita / É bonita, é bonita e é bonita”. Sai do show uma multidão de brazucas de alma lavada. Esta é minha identidade, é um esforço zero ser assim, pois isto é o que sou.
Ah, ralo para pia é sink drain, e bed bugs são os percevejos (os bichos, não as tachinhas, que são thumbtacks).
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