A democracia liberal e a venezuelização do Brasil na campanha de 2022

André Oliveira & Rodolfo Marques são colunistas do Jornal de Toronto
Discute-se na imprensa e na academia quais teriam sido as causas que levaram o deputado federal Jair Bolsonaro, então no PSL, a vencer a eleição de 2018, interrompendo uma polarização centrada entre PT e PSDB. É comum que se apontem a rejeição aos partidos tradicionais, produzida pelas ações da Operação Lava Jato, e a suposta vinculação do PT ao Foro de São Paulo, com o respectivo apoio a regimes autoritários como o da Venezuela bolivariana. Setores identificados com o campo da esquerda sugerem que a eleição de Bolsonaro se tratou de uma articulação bem urdida das elites políticas e econômicas refratárias à participação popular, as mesmas que teriam provocado o golpe, não o impeachment, contra a presidente Dilma Rousseff. Não há, por óbvio, consenso sobre os fatores ou circunstâncias relevantes que permitiram a vitória eleitoral do ex-capitão do Exército.
De qualquer modo, parece induvidoso que o “espantalho” da venezuelização do país concorreu para que amplos setores da classe média apoiassem a candidatura de Bolsonaro em 2018. Como pontuamos na coluna passada, o medo pode ser usado como poderoso instrumento de mobilização popular em campanhas eleitorais. Exatamente por isto, causou estranheza que o vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, já como senador eleito pelo Rio Grande do Sul, tenha dito em entrevista que, se vencesse a eleição, o próximo governo Bolsonaro aumentaria o número de ministros do Supremo Tribunal Federal e acabaria com a respectiva vitaliciedade no cargo – os novos ministros teriam mandato determinado. Depois, Bolsonaro confirmou a pretensão e, como houve má repercussão junto à opinião pública, recuou.
Fixar mandato para ministros das cortes supremas não se constitui, em princípio, em um mecanismo de natureza autoritária, mas aumentar o seu número compõe o roteiro já conhecido adotado pelos líderes autoritários para obter maioria e, assim, retirar a autonomia da principal instituição de controle, a corte suprema – no nosso caso, o STF. Mudança institucional desse tipo terminaria por erodir o sistema de freios e contrapesos (checks and balances) entre os ramos de poder (Executivo, Legislativo e Judiciário) que caracteriza a estrutura típica da chamada democracia representativa do tipo liberal. Líderes autoritários, à esquerda e à direita, rebelam-se contra as instituições de controle porque não querem ter seus atos de governo escrutinados e/ou se sentem pouco à vontade em prestar contas, resultando, assim, em atropelo à transparência governamental.
Portanto, a proposta de Bolsonaro de aumentar o número de ministros do STF, cujas nomeações lhe caberiam com a provável chancela de um Senado onde detém maioria, nos aproximaria de uma venezuelização que ironicamente prometeu combater na eleição de 2018. A perda da autonomia das instituições de controle resulta no agigantamento dos poderes do Executivo, com evidentes prejuízos para a qualidade da democracia. No “Relatório Índice de Percepção da Corrupção 2021” da organização Transparência Internacional, o Canadá aparece em 13º lugar, sendo o menos corrupto das Américas (pontuação 74/100), ao passo que a Venezuela figura na 177ª posição (pontuação 14/100) dentre 180 países que compõem o ranking, uma evidência de que, uma vez submetidas as instituições de controle aos interesses do Executivo, a corrupção estatal se torna sistêmica e robusta.
Bolsonaristas exaltados (mas não só eles) reclamam do excesso de intervencionismo do Supremo Tribunal Federal em assuntos políticos ou mundanos, como, por exemplo, decisões que impactariam negativamente o direito de livre expressão. Pode ser que algumas decisões tenham sido realmente excessivas e que tenha faltado, em certos casos, uma virtude essencial aos ministros do STF, já que se trata da instituição situada no topo do arcabouço político-constitucional – a autocontenção.
Dito de outro modo, quem exerce um poder incontrastável precisa agir com autocontenção para não ultrapassar a linha tênue que separa a legalidade do abuso. É uma discussão que precisará ser enfrentada cedo ou tarde depois da eleição, já atenuadas as paixões que uma campanha eleitoral ultrapolarizada como a atual provoca.
Quaisquer sejam os problemas que o Brasil tenha que enfrentar no futuro imediato, incluindo os relativos à interação entre Executivo e Judiciário, não custa lembrar a preciosa lição sobre o valor da democracia de Alexis de Tocqueville em A Democracia na América, vale dizer, “não há nada mais fecundo em maravilhas do que a arte de ser livre; mas não há nada mais difícil do que o aprendizado da liberdade. O mesmo não se aplica ao despotismo”.
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