Bem-vindo a Candeia, venha mesmo sem fé!

“A Cabeça do Santo” é uma história leve, divertida, e cheia de significado

por Ulla Saraiva

O livro A Cabeça do Santo, de Socorro Acioli, foi desenvolvido a partir de um conto escrito por ela na oficina de Gabriel Garcia Márquez, em Cuba. E com as bênçãos de Gabo, Santo Antônio, São Francisco e Padre Cícero, a escritora, reconhecida na literatura infantil, escreveu em palavras simples e prosa sólida uma história com personagens possíveis e cativantes, que fala da religiosidade do Nordeste, que passeia pelo realismo mágico, drama, romance, aventura, e que te prende do começo ao fim.

Samuel inicia sua jornada em romaria pelo sertão cearense, partindo de Juazeiro do Norte a pequena cidade fictícia de Candeia. Sua caminhada é sem a fé típica dos romeiros, é coberta pela dor do luto e pelo desejo de vingança. Ele segue por 16 dias embaixo do sol inclemente, sentindo fome, sede, alimentado por uma promessa feita à falecida mãe e pelo ódio devotado ao pai que abandonou a esposa grávida e a quem culpa pela morte dela.

A promessa feita à mãe foi de acender três velas nos pés das imagens de Padre Cícero em Juazeiro do Norte, de São Francisco em Canindé e, a última na imagem, de Santo Antônio em Candeia. Ele deveria também procurar sua avó e seu pai. Ao chegar ao seu destino, Samuel se surpreende com uma cidade morta, não mais que 20 casas, a maioria desabitadas, uma igreja sem Padre. A cidade que experimentou em outros tempos a prosperidade de um destino turístico da fé com a construção do Santo, cuja cabeça repousa inerte no meio de um descampado por um erro de cálculo do responsável pela obra, e que pelo seu fracasso se tornou uma cidade fantasma. O Santo Antônio trouxe desgraça, ao invés de graça.

Sua avó, sobre quem ouviu as melhores referências, o recebe com indiferença. A velha desalmada, vendo-o sujo, cansado e com fome, não foi capaz de oferecer-lhe cama, água ou um prato de comida; o enxota de forma que ele começa a desconfiar que ela esconde seu pai – antecipando seu desejo de vingança. Samuel encontra abrigo na cabeça oca do santo. E é aí que coisas inesperadas começam a acontecer, fazendo com que ele encontre um propósito, amigos, inimigos e um amor na forma de uma voz desconhecida que canta. Uma jornada de crescimento para Samuel, para além das suas perdas e do abandono, que é acompanhada pelo novo florescer da cidade moribunda e esquecida.

Me toca particularmente ver histórias que mostrem elementos que me são tão familiares como nordestina, como a vida no interior, as cadeiras na calçada, a natureza, as paisagens, a religiosidade que se mistura com superstição, e os poderosos que pensam em tudo menos em seu povo. Mostra a fé, ao mesmo tempo que tece críticas à indústria da fé. Consigo ver semelhanças com grandes obras de escritores nordestinos como Ariano Suassuna. Uma história leve, divertida, e cheia de significado, que nos mostra que o “tempo de viver é em cima da terra”.

Ulla Saraiva é escritora, autora do livro O Quarto Amarelo Sol.

Você pode adquirir o livro A Cabeça do Santo, de Socorro Acioli, pelo website da Canoa Cultural.

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