Castas geladas e com espuma

Houve um tempo em que o copo de cerveja foi testemunha ocular de grandes encontros, discussões e planejamentos.

Ilustração de Valf.

Cristiano de Oliveira é colunista do Jornal de Toronto

Houve um tempo em que o copo de cerveja foi testemunha ocular de grandes encontros, discussões e planejamentos. Em torno de uma cerveja, discutia-se o futuro, a política, os empreendimentos; nasciam grandes ideias e também aquelas cuja grandeza só durava até a ressaca passar; forjavam-se amizades, recordava-se o passado. A cerveja era o combustível da discussão. Mas eis que passa o tempo, ostentar é preciso, ter assunto não é preciso, e a cerveja hoje infelizmente se torna a própria discussão.

Em toda situação de cachaçalização, ou seja, confraternização que dispõe de um negocinho pra beber, havia duas opções: cerveja clara e escura. A escura era mais doce. Fim. Era tudo o que você precisava saber sobre a geladeira do bar, além de pequenas verificações, como concluir que Kaiser e Malt 90 eram um pouco mais difíceis de engolir. Mas sem preconceito, afinal toda cerveja era aceita na sociedade sem preconceito de cor, origem ou orientação amargural. Ela era o veículo de comunhão, o bem de consumo que unia democraticamente ricos e pobres em torno de um copo.

Mas a igualdade incomoda. O cara faz beicinho se tiver que beber a mesma coisa que o sujeito da casta inferior está bebendo. Ele precisa arrumar alguma coisa para separá-lo do restante, e no máximo fundar um clube de apreciadores para ter com quem conversar dentro do seu mundinho diferenciado de conhecedor supremo dos mistérios do mundo. Soma-se a isso um rastilho de veneno que já permeava o mundo das cervejas nos anos 80: os boatos. Tal cerveja agora ficou ruim, tal cerveja tá sendo fabricada ao lado de um rio onde o povo lava a roupa… Várias historinhas que desfavoreciam uma marca pra favorecer a outra. De onde saíam as histórias, eu não sei, mas as cervejas todas continuavam exatamente iguais, embora o povo jurasse que elas passavam a ter Emulsão Scott na fórmula ou coisa do gênero. A evolução desses boatos vai ao encontro dos desejos do diferenciadão: hoje o boato é que toda cerveja nacional tem milho, piolho de cobra, caruncho ou coisa que o valha, e ele usa isso para alimentar sua crença doidona de que as importadas são todas lindas e sensacionais. Meu irmão, brasileiro trata Budweiser como cerveja premium! O povo num samba (muito do fuleiro, diga-se de passagem) riu da minha cara quando eu pedi uma marquinha local das antigas – aqui é só badiuáize. A Heineken no Brasil nasceu via Kaiser e hoje é Schincariol com roupa de grife, mas o bonitão delícia de mamãe fica bravinho se você fala mal de Heineken! Você sabe que a banalidade tomou conta quando cerveja passa a ter torcida. E enxada pra capinar um quintalzinho, alguém aceita?

Continuo me recusando a ser o velho babão que vive repetindo que “no meu tempo é que era bom”. Não, não era bom. Você acha que era bom porque só se lembra do bolinho da vovó e dos palitim de picolé premiado da Kibon, e sua memória apagou tudo que havia de ruim. Mas o bom é o agora. Assim sendo, que bom que hoje há opções pra todos os gostos. Que bom que há diferentes sabores e consistências, há notas amadeiradas e notas de boldo russo digeridas pela civeta da Nova Guiné… Não me oponho a nada disso. A gente só precisa saber desfrutar disso sem encher muito o saco do próximo.

Adeus, cinco letras que choram.

Ilustração de Valf.

Sobre Cristiano de Oliveira (30 artigos)
Cristiano é mineiro, atleticano de passar mal, formado em Ciência da Computação no Brasil e pós-graduado em Marketing Management no Canadá. Foi colunista do jornal Brasil News por 12 anos. É um grande cronista do samba e das letras.

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