O espectro da ameaça autoritária e a resiliência das democracias

André Oliveira & Rodolfo Marques são colunistas do Jornal de Toronto
Em nossa primeira coluna (“Uma nova ameaça ronda a democracia liberal”) no Jornal de Toronto, publicada em agosto de 2018, abordamos o tema da erosão gradual, mas segura, das instituições democráticas por dentro, ou seja, realizada pelos próprios governantes de perfil autoritário, de que são exemplos notórios Recep Erdogan, na Turquia e Viktor Orbán, na Hungria.
Tanques nas ruas emulando os golpes de Estado do passado teriam saído de moda, portanto, seriam movimentos anacrônicos em dissonância com o novo roadmap para substituir as democracias por regimes autoritários. O livro Como as democracias morrem, dos cientistas políticos norte-americanos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, pretendeu escrutinar como acontecia a transição da institucionalidade democrática para regimes fechados e se tornou uma referência nas discussões acadêmicas e meios jornalísticos, mas não sem provocar acerbadas divergências.
Agora, Levitsky, na companhia de Lucan Way, retorna com o artigo “Democracy’s suprinsing resilience”, publicado neste mês no Journal of Democracy para afirmar que o estado de erosão democrática global não era como ele mesmo preconizava e que, observando bem os dados de organizações independentes como o Freedom House e Varieties of Democracy Project (V-DEM), na verdade, são as democracias que apresentam uma surpreendente resiliência nesse primeiro quarto do século XXI em face das imanentes ameaças autoritárias.
Levitsky e Way sustentam que não houve a esperada onda reversa de autoritarismo, sendo que os regimes fechados apresentaram retrocessos ou colapsos como sucedeu, por exemplo, com as Filipinas, Hungria, Turquia e Venezuela. Algumas razões são arroladas pela dupla para a resiliência das democracias, dentre as quais figuram a modernização, estabelecendo “uma correlação robusta entre desenvolvimento econômico e democracia”, bem como, na esteira da lição do cientista político Robert Dahl, a consolidação da “ordem social pluralista” na qual a distribuição de poder e recursos na sociedade resulta em sua autopreservação.
Nas autocracias, ao contrário, há concentração de recursos em torno do grupo político dirigente, de tal modo que o monopólio estatal das riquezas terminaria por promover a dependência clientelista dos cidadãos ao Estado. Portanto, em lugar da dispersão de riqueza, rendimentos, habilidades, status, etc., na sociedade tal como sucede nas democracias, há luta para a obtenção de recursos essenciais à própria subsistência. Há outras razões apontadas pelos autores, é claro, a lista não poderia ser taxativa ou conclusiva, uma vez que se trata de uma conjuntura política complexa em contínuo processo de mudança (uma democracia pode transitar para um regime classificado como autoritário competitivo – há eleições, mas com constrangimentos institucionais para a oposição – e uma autocracia pode caminhar, gradual ou abruptamente, para uma abertura democrática).
Antes do presente recuo de Levitsky, sua posição anterior concernente à morte da democracia já tinha sido alvo de críticas por outros analistas, como, por exemplo, ocorreu entre nós com o cientista político Marcus André Melo ao apontar estudos qualitativos e quantitativos que atestavam que as previsões sobre o colapso da democracia haviam falhado (ver “Por que as democracias sobrevivem?”, publicado na Folha de São Paulo).
De qualquer sorte e a despeito dos (bons) novos achados acadêmicos, o espectro da ameaça autoritária persiste, pois não há infelizmente nenhum mecanismo ou salvaguarda institucional que impeça, sozinho e a priori, o colapso das democracias, sendo esta uma razão relevante para que se lute por sua consolidação e expansão.
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