50 anos do outro 11 de setembro

Lições do Chile democrático

Palácio de La Moneda parcialmente destruído depois do bombardeio, em 11 de setembro de 1973.

André Oliveira Rodolfo Marques são colunistas do Jornal de Toronto

No próximo dia 11 de setembro, completam 50 anos do golpe militar que derrubou e resultou na morte do então presidente Salvador Allende, no Chile. Meio século já é um tempo suficiente para esmaecer, sobretudo para os mais jovens, a memória vívida de um evento político que obteve grande repercussão na América do Sul. Na época, vários países do Cone Sul, exceto o Chile, eram governados por ditaduras militares que, de resto, possuíam afinidades e estreita colaboração entre elas. O Chile se assemelhava a uma ilha de estabilidade democrática na região, mas se tratava de uma miragem, pois a reforma agrária levada a cabo pelo governo do democrata-cristão Eduardo Frei conseguiu, por exemplo, desagradar a todo espectro político, acirrando ainda mais as divisões na sociedade chilena. A eleição, realizada em 4 de setembro de 1970, do médico e senador Salvador Allende, representando a Unidade Popular (UP), a coalizão de partidos de esquerda, mudaria tudo rapidamente. E por que “a via chilena para o socialismo”, apresentada pela UP como alternativa democrática ao modelo autoritário soviético, terminou de modo violento?

Certamente, a principal razão está no ambiente conflagrado da Guerra Fria e, como muitos analistas já avaliaram, o Chile não era grande o suficiente para implementar uma mudança de curso que pudesse forjar um novo modelo de socialismo nem tampouco pequeno demais para ser ignorado pelas grandes potências envolvidas no jogo político global. Mas havia outros motivos e um deles estava no sistema eleitoral chileno. Não havia então segundo turno e Salvador Allende venceu a eleição com 36,6% dos votos; o conservador Jorge Alessandri obteve 34,8% e o democrata-cristão Radomiro Tomic logrou 27%. Se o desenho institucional admitisse o segundo turno, a soma dos dois candidatos da direita (Alessandri e Tomic) teria sido provavelmente suficiente para impedir a vitória do candidato da UP na segunda volta. O Congresso precisava referendar o resultado e, para superar as desconfianças sobre a UP, Allende aceitou o compromisso de realizar reformas constitucionais com “garantias democráticas” e, assim, tomou posse em 25 de outubro de 1970.

O massivo programa de estatização do governo da UP se tornou ponto de extrema tensão no país. Ocupações de fábricas pelos trabalhadores provocaram, como resposta, paralisações nacionais de comerciantes, caminhoneiros, profissionais liberais e outras categorias que se opunham a Allende. Como desdobramento, houve desabastecimento de produtos, subida vertiginosa da inflação e radicalização política à extrema-esquerda com o MIR (Movimiento de Isquierda Revolucionária) e, à extrema-direita, com o movimento Patria y Libertad, cujo símbolo remete a uma aranha. A própria UP cingiu-se entre os que buscavam um acordo amplo com os democratas-cristãos, sob o lema Consolidar para Avanzar, e os que pretendiam radicalizar o processo de reformas sob o slogan Avanzar sin Transar (Avançar sem Negociar). Allende foi claramente tragado pelo turbilhão de circunstâncias políticas e econômicas sobre as quais já possuía pouco controle.

Início do bombardeio ao Palácio de La Moneda, liderado pelo general Augusto Pinochet.

Em 11 de setembro de 1973, a via chilena para o socialismo foi abruptamente abreviada quando aviões Hawker Hunter da Força Aérea Chilena atacaram o Palácio La Moneda, resultando na morte de Allende e na instalação de uma das ditaduras mais ferozes de que se tem notícia na América do Sul. Antes, porém, do 11 de setembro chileno, a Aviação Naval argentina já havia bombardeado o centro de Buenos Aires, incluindo a Casa Rosada, sede do governo, em 16 de junho de 1955, em uma tentativa frustrada de depor o presidente Juan Perón. Esses bombardeios de civis pela aviação militar em situações não caracterizadas como de guerra externa dizem muito sobre a fraca institucionalidade democrática no continente sul-americano.

O Chile terminaria por realizar uma transição pacífica da ditadura pinochetista para a democracia, e hoje é apontado em vários rankings de organizações independentes como um dos países mais prósperos e democráticos do continente americano. No Índice de Percepção de Corrupção da Transparência Internacional, por exemplo, o Chile figura na 27ª posição, ao passo que o Brasil ocupa o 94º lugar. O governo de Gabriel Boric, um presidente esquerdista, não provoca mais os abalos sísmicos da UP de Allende no passado porque, embora persista forte polarização política, há, por outro lado, consenso coletivo sobre o necessário respeito às regras do jogo democrático.

No livro The Narrow Corridor – States, Societies, and the Fate of Liberty [O Corredor Estreito – Estados, Sociedades e o Destino da Liberdade, ainda sem tradução em português], Daron Acemoglu e James Robinson afirmam que o caminho ideal para a proteção da liberdade e da democracia está no “corredor estreito” no qual a sociedade civil é forte o suficiente para controlar o governo – chamado por eles de The Schackled Leviathan [O Leviatã Algemado] – e este, por sua vez, é capaz de prover os serviços públicos necessários à população.

Na análise dos autores, o Chile, assim como a Alemanha no passado após a derrota do nazismo, realizou a proeza de transitar do autoritarismo – The Despotic Leviathan [O Leviatã Despótico] no modelo mental adotado no livro – para o “corredor estreito”. Olhando de modo retrospectivo, vemos que se tratou de uma mudança trajetória fascinante 50 anos depois de um golpe de Estado ultraviolento e um exemplo para os demais países do continente sul-americano.

Palácio La Moneda em chamas.

Sobre André Oliveira & Rodolfo Marques (37 artigos)
André Oliveira (à esquerda) é advogado com especialização em Direito Público, doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco e membro da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) desde 2009. Rodolfo Marques é analista judiciário, publicitário e jornalista; Mestre (UFPA) e Doutor (UFRGS) em Ciência Política, e professor de Comunicação Social na Universidade da Amazônia e na Faculdade de Estudos Avançados do Pará.

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