Sobre as vantagens de morar sozinho(?)

É uma tentação, convenhamos, não ter ninguém para lhe contrariar – pelo menos da porta de casa para dentro

Foto: Jürgen Thüringen.

José Francisco Schuster é colunista do Jornal de Toronto

O resultado do último censo do IBGE verificou que os lares brasileiros têm menos pessoas residindo juntas. “As famílias vão acabar. Todo mundo está descobrindo a vantagem de morar sozinho”, me disseram. Não acho que chegue a tanto, mas é verdade que há uma tendência para menos uniões estáveis e casamentos e, por outro lado, para um número crescente de separações.

É uma tentação, convenhamos, não ter ninguém para lhe contrariar – pelo menos da porta de casa para dentro. Você faz o que lhe dá na telha, quando tem vontade, ou simplesmente não faz nada em relação a algo e ninguém lhe diz nada. Dá uma aparente sensação de liberdade, de controle total sobre a própria vida. Nunca mais ter que se deitar no chão da loja, espernear e fazer um escândalo porque seu desejo não está sendo atendido. Seria esta a solução ideal para a humanidade? Tenho sérias dúvidas.

A verdade é que não somos ermitões, vivendo distantes da sociedade e capazes de prover sozinhos todas as nossas necessidades. Então, não faria sentido tentarmos nos afastar dela o tanto quanto possível. Apesar de viver em sociedade é trazer eventualmente situações indesejadas, temos que nos dar conta de seu lado positivo, do quanto ela contribui para nossa vida e facilita nosso desenvolvimento. Sós, nunca passaríamos de um mundo extrativista, de suprir apenas o básico para vivermos alguns poucos anos. Seria impossível plantar em volume, pela falta de instrumentos agrícolas de qualidade, ou termos uma casa e vestimentas com um mínimo de condições. Sem profissionais de saúde, correríamos riscos com as doenças mais básicas, e assim por diante. Estaríamos até hoje na idade da pedra.

E sendo um fato de que precisamos da sociedade, qual a melhor maneira de nos prepararmos para uma convivência harmoniosa? Aí está a importância da família como primeira e básica escola de convivência. É onde aprendemos que é necessário um revezamento de vontades e de atendimento de necessidades. É onde aprendemos a abandonar o egoísmo e a enxergar o outro. Assim, de pequenos aprendemos que não podemos comer tudo e não deixar nada para os demais familiares.

Até há pouco tempo, a regra inclusive era ter irmãos, e aprendia-se a dividir o quarto e as regras que isso acarretam, da organização à hora de acender e apagar a luz. A geração de muitos filhos únicos já foi um baque neste sentido. Com vários pais os tornando reizinhos da casa, perderam todo um aprendizado, que ficou retardado para quando chegam à escola. Além de ser um tempo importante não aproveitado, com colegas dificilmente se forma o grau de cumplicidade que há entre irmãos. É sempre mais fácil reclamar aos pais da atitude de quem não mora na mesma casa e com quem se tem convivência de apenas algumas horas por dia, achando-se injustiçado. A redução no contato com vizinhos, dentro do processo de isolamento atual, com a família estendida, pela correria da vida, e até com os próprios colegas de escola, pela troca de interação presencial pela tecnologia, não contribui.

Chegando ao estágio adulto, começam as interações sociais do mundo do trabalho, da política e as demais, com um nível de verticalização (estruturas de poder e chefia) que não havia sido encontrada até então. Sem estarmos a esta altura devidamente preparados para que nossa vontade prevaleça apenas eventualmente, haverá um desajuste e um viver à margem da sociedade.

Antes disso, na adolescência, por outro lado, é inevitável que surjam pessoas especiais para nós, e a vontade de compartilhar a vida com alguém que faz nossos olhos brilharem. Atualmente, porém, fazer isto virar uma realidade está ficando cada vez mais complicado. Por uma infância já mais em isolamento ou por passarmos por uma história amarga de separação dos pais, podemos acabar reforçando as verdades que construímos ao longo do tempo e não permitimos divergências. Assim, deixam de formar-se casais e separações ocorrem por problemas de menor porte, que poderiam ser resolvidos com aconselhamento ou terapia.

É desta forma que o mundo se enche de pessoas vivendo solitariamente. Nossa verdade está garantida, mas perde-se a mais básica experiência democrática. Não ter uma segunda opinião nos torna cada vez mais rígidos em nossas ideias, e perdemos de descobrir boa parte do mundo. Podemos passar a vida comendo sorvete de chocolate porque nunca houve quem sugerisse que o de morango também vale a pena, ao menos, experimentar. Aliás, uma segunda opinião pode nos trazer calma e nos livrar de, em um momento de pânico, chutarmos o balde e fazermos algo do qual nos arrependeremos.

Claro que há relações tóxicas, como as daqueles que querem impor sua vontade como única, e delas devemos nos livrar imediatamente; mas relações positivas são uma grande alegria na vida. Saber que alguém nos espera quando chegamos em casa, viver momentos de carinho e até descobrir novas ideias que nos são apresentadas, é algo com o qual os solitários não contam. Pelo preço de cedermos algumas vezes em nossas opiniões e desejos, descobrimos um novo mundo que não percebíamos: o quanto é prudente não se achar dono da verdade e até a alegria de dividir e ver o outro sorrir com isso. É aprender a não viver olhando só para si mesmo, ouvindo só a própria opinião e se achando infalível, e descobrir que a democracia, a pluralidade de opiniões, é o melhor sistema. E que é aplicada a começar da diversidade de sua casa.

Sobre José Francisco Schuster (74 artigos)
Com quase 40 anos de experiência como jornalista, Schuster atuou em grandes jornais, revistas, emissoras de rádio e TV no Brasil. Ao longo dos últimos 10 anos, tem produzido programas de rádio para a comunidade brasileira no Canadá, como o "Fala, Brasil" e o "Noites da CHIN - Brasil". Schuster agora comanda o programa "Fala Toronto", nos estúdios do Jornal de Toronto.

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