Perder-se em Clarice
por Ana Elisa Granziera
Escrever uma nova resenha sobre Clarice Lispector é como buscar um novo jeito de descrever o pôr-do-sol. Como ter um novo olhar? Não tenho coragem. Que não seja um novo olhar, mas a vista de novos olhos: iniciei-me tarde nos mistérios de Clarice. Ainda que leitora voraz de tudo quanto me caísse em mãos, Clarice ficou às margens do meu alcance até os quarenta anos. Faz bem. Maturidade é um mapa que ajuda a leitura de uma autora que alguns consideram difícil.
A Hora da Estrela é uma cidade de vielas complexas e passos perdidos, que parecem sem direção, mas se abrem para imensos monumentos. Quando menos se espera, BAM! Surpresa!
O narrador conta a história de Macabéa, uma moça miserável, sem nenhum atrativo, vivendo uma vida dura sem sequer compreender o que lhe falta, até finalmente ousar sonhar que pode alguma coisa, como a personagem principal de A Elegância do Ouriço, de Muriel Burberry.
Há quem ame A Hora da Estrela e há quem deteste. Quem não gosta reclama que a tal história da moça não começa nunca, e, quando começa, quase não acontece. De fato, nunca um livro dedicou tão poucas palavras a uma suposta personagem principal.
Quem adora, enumera motivos. Eis o meu.
O que formalmente se teria como “a história” é na verdade uma trilha fugidia de miolos de pão que guia o narrador, escritor inventado por Clarice, pelos becos de seus pensamentos que vêm e vão, e voltam e vão de novo, e tentam e decidem, no fluxo de consciência de um homem dominado por uma acachapante insegurança. Ele justifica escolhas de palavras e caminhos narrativos, volta atrás e se desculpa, se desmancha em arroubos emocionais, apaga trechos inteiros, reescreve parágrafos, e se explica sem nunca se entender. Calha de ser um desses livros cuja história não é sobre o personagem, mas sobre o narrador. O narrador-escritor em seu tortuoso processo criativo, em que se luta contra o texto até que se aceite a verdade, e as palavras fluem quando a verdade transparece. É a formação de uma ideia a partir da experiência e a difícil transmutação do empírico no abstrato, e do abstrato em palavras colocadas numa ordem que faça algum sentido. É o tempo real corrido no consciente do escritor enquanto edita, revisa, corta, apaga, conserta, recria, repensa, reescreve, apaga de novo e se condena, se felicita, sofre e goza o processo na esperança de um resultado, deixando que seu inconsciente escape, aqui e ali, feito réstias de luz fugindo por entre persianas de uma janela quebrada. Não é nada, e ousa sonhar, como Macabéa.
A Hora da Estrela é o retrato da mente de um autor ao escrever um livro, enquanto tenta, sem sucesso, manter distância de seus personagens. Tarefa impossível. Que nessas vielas tortuosas, de passos no escuro, BAM! Surpresa! Autor, narrador e personagem se trombam sempre pelo caminho, derrubando suas bolsas, espalhando seus pertences, sem mais saber de quem é quê.
Ana Elisa Granziera é artista e escritora, autora do livro Brutta Figura.
Você pode adquirir o livro A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, pelo website da Canoa Cultural.
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