Homocultura e História na repressão policial 2SLGBTQIA+ de Toronto
André Sena é colunista do Jornal de Toronto
Da série “Flashes da História Canadense”
O Mês do Orgulho no Canadá definitivamente injeta visibilidade, consciência histórica e sobretudo a celebração das conquistas da comunidade 2SLGBTQIA+ no país, desde a descriminalização da homossexualidade – obtida no dia 14 de maio de 1969. Entretanto, foi apenas em 27 de junho do mesmo ano que a Criminal Law Amendment Act foi devidamente ratificada por Ottawa (royal assent), exatamente um dia antes da Revolta do Stonewall em Nova Iorque, que mudaria a história da comunidade 2SLGBTQIA+ para sempre, transformando o 28 de Junho em uma data comemorada internacionalmente.
A esta altura da leitura você já deve estar intrigado – se não estiver até mesmo incomodado – com a sequência crescente de letrinhas ao longo dos anos (chamada pelo ativista transgênero canadense Jo Jefferson de Alfabeto do Arco-Íris), inclusive com o lançamento público de uma nova bandeira em 2018, (que chegou por aqui com toda força em 2021/22), a Progress Pride Flag, não em substituição, mas como um desdobramento da antiga Rainbow Pride Flag. Se a primeira tinha apenas listras de cores do arco-íris, dispostas em formato horizontal, a nova tem novas cores, uma seta da esquerda para direita, e um disco púrpura sobre um fundo amarelo.
Se a Pride Flag nos lembrou durante décadas da importância da diversidade e da inclusão, a Progress Pride Flag nos presenteia com uma nova reflexão, mais ajustada aos novos tempos: a interseccionalidade. Se a primeira, criada por Gilbert Baker na São Francisco de 1978, nos conscientiza ainda hoje sobre a necessidade da convivência entre as diversas comunidades, a Progress Flag, desenhada pelo artista norte-americano Daniel Quasar em 2018, nos chama atenção para a unidade das diferentes agendas políticas no campo dos direitos humanos. Nenhuma luta pode acontecer de forma isolada e esperar sucesso em nossos dias. Um mundo melhor só pode ser obtido por uma luta conjunta, necessariamente interseccional.
Entretanto, tudo o que estamos celebrando, seja com uma bandeira ou com outra, seja aqui no Canadá ou em outras partes do mundo, só é possível graças a acumulação de décadas de resistência, heroísmo e resiliência. A história 2SLGBTQIA+ canadense vem acompanhada de um somatório de violência institucional e repressão, ao mesmo tempo que de coragem e intervenção, seja com a famosa Prisão dos Quatro em 1974, ocorrida na Brunswick Tavern, aqui em Toronto, na Operação Soap perpetrada pela polícia em 1981 (veja meu artigo sobre isso, publicado aqui em junho de 2020) ou pela criação do importante jornal Body Politics, primeiro grande veículo alternativo e proativo de informação para a comunidade gay de Toronto, sobre o qual escrevi no Mês do Orgulho do ano passado.
Não foi fácil, e ainda não é, contemplar as bandeiras coloridas hasteadas nos mastros das escolas de Toronto, de Halifax ou de Vancouver durante todo o mês de junho. Ou ter as ruas de Fredericton pintadas com as cores do arco-íris. Exatamente como não foi fácil inaugurar e manter a livraria Glad Day, que ainda hoje é um dos grandes polos de difusão editorial e bibliográfica sobre a história e a cultura 2SLGBTQIA+ canadense, bem como um ponto de encontro, com palestras e lançamentos de livros no coração da “Gaybourhood”, a Church Street em Toronto.

Interior da livraria Glad Day, em Toronto. Foto: @gladdaybookshop.
Doze anos depois da sua criação em 1970, como marco inicial posterior à descriminalização da homossexualidade no Canadá, a Glad Day foi alvo de uma violenta e repressiva batida policial, que deixou marcas, rememoradas até hoje por quem viu e testemunhou o ocorrido. O Glad Day Raid, ocorrido a 21 de abril de 1982, é hoje muito mais do que um incidente do passado; é um marco na linha do tempo da história 2SLGBTQIA+ canadense e, portanto, um lugar de memória de toda uma comunidade de pessoas.
A polícia autuou Kevin Orr, gerente da então única livraria gay de Toronto, pela “posse e comercialização de material obsceno”, um argumento clássico para a desqualificação de qualquer projeto de difusão homocultural, muito utilizando ainda hoje em vários lugares do mundo. Me faz lembrar um certo país, protestos de pastores e um tal “Kit Gay”, material de educação sexual, pela diversidade e contra a intolerância, retirado das escolas algum tempo atrás. Mas isso é outra história.
Nove integrantes do jornal Body Politic e jornalistas da Pink Triangle Press seriam igualmente fichados pela polícia na mesma data em Toronto. Os policiais que executavam operações desse gênero naqueles anos eram conhecidos como “o esquadrão da moralidade”; qualquer coletivo 2SLGBTQIA+ que se aventurasse na cena cultural ou na difusão de ideias sabia que a atmosfera repressiva, da mesma cidade que recebera a visita de Oscar Wilde cem anos antes, lhes era uma ameaça permanente.
A batida policial à Glad Day não passou despercebida, entretanto; o Conselho da Comunidade Gay de Toronto, uma organização que abrigava diversos movimentos pelos direitos humanos, se posicionou publicamente, o que se desdobrou em uma série de protestos, organizados em conjunto com o movimento feminista. Eram os primeiros embriões da interseccionalidade. As palavras do então porta-voz do Conselho, Harvey Hamburg, foram duras e assertivas, denunciando um esforço sistemático da polícia no sentido de desmobilizar e neutralizar a comunidade 2SLGBTQIA+. Eve Zaremba, escritora e editora do jornal feminista Broadside, liderando um protesto de 700 pessoas, número significativo para a época, declarou de seu megafone: “Querem destruir as poucas vozes que conseguimos reunir!”.
Gradualmente, o aparato repressivo foi sendo desarticulado. Toronto foi aos poucos se modernizando, e hoje é uma referência queer urbana mundial para a cultura e expressão 2SLGBTQIA+. A Biblioteca Pública de Toronto abriga em seus auditórios palestras, e até mesmo entretenimento Drag Queen para o público infanto-juvenil; o parque Barbara Hall se transformou em um espaço de memória e vigília em honra às vítimas 2SLGBTQIA+ nos anos mais terríveis da epidemia de HIV e Aids em Toronto; a Gay Pride Parade é uma realidade que retornou com força total depois da pandemia de Covid-19; e a Gay Village está sendo revitalizada a plenos pulmões. O Canadá é hoje lugar de refúgio e proteção para pessoas dessa comunidade do mundo inteiro. Os tempos mudaram, e buscamos outros paradigmas de luta e construção de novas agendas progressistas.
E lá está a Glad Day Bookshop, com suas portas abertas, transbordando de livros acadêmicos, histórias em quadrinhos, literatura e muitas vozes. É definitivamente meu lugar favorito na Gaybourhood, e é a ela que dedico este texto.
Happy Pride! Nossa luta é todo dia, pelo fim da homofobia.
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