Na lata, na luta e na letra

André Sena é colunista do Jornal de Toronto
Da série “Flashes da História Canadense”
A Comunidade 2SLGBTQIA+ canadense tem neste ano de 2021 muito o que celebrar. Celebração que nos encaminha para uma conscientização ainda mais refinada, e não para a falsa certeza de que já chegamos aonde queríamos. Nesta tênue membrana entre tudo aquilo que já foi conquistado e tudo o que ainda precisa ser feito, devemos reconhecer com efeito as lutas do passado e as trincheiras abertas por aqueles que vieram antes de nós, sem os quais o que já temos não existiria. A revista The Body Politic, que circulou pelo país entre os anos de 1971 e 1987, cumpriu um papel revolucionária nesse sentido e merece tanto a nossa recordação como reverência.
A comunidade gay canadense já expressava uma certa tradição na formulação de periódicos voltados para este segmento específico do público antes do surgimento da Body Politic no início da década de 1970. As publicações Gay International e Two cumpriram esse papel informativo e formativo por aqui, conectando homens e mulheres, trans e cis, tribos e lobos solitários à agenda mundial LGBTQ, que durante a década de 1960 sofria um processo formidável de florescimento e maturação. Entretanto, apesar desses dois periódicos, foi a revista Body Politic que se inscreveu na história da imprensa queer canadense como uma voz estridente, comunitária e identitária, antenada com um movimento das ruas que já começava a tomar forma em organizações pioneiras como o a TGA (Toronto Gay Association), a CHAT (Community Homophile Association of Toronto) e a GATE (Gay Alliance Towards Equality) baseada em Vancouver. Essas organizações protagonizaram o We Demand Rally, episódio histórico gay canadense ocorrido em Ottawa no dia 28 de agosto de 1971.
Debaixo de uma chuva torrencial, aproximadamente 100 pessoas marcharam até o portão principal do Parlamento canadense sob as palavras de ordem “Two-four-six-eight! Gay is just as good as straight!”. Parece ingênuo aos nossos olhos de hoje, mas a História definitivamente bebe na fonte de movimentos que equilibram contingência e espontaneidade. O Rally, realizado em agosto, teve como um de seus mais fortuitos resultados a fundação da Body Politic, em outubro do mesmo ano, impresso e vendido pelo custo de 25 centavos.
Foram 135 edições durante os 16 anos em que a revista circulou e promoveu um serviço inestimável de comunicação e informação, não apenas para a comunidade gay do país, mas também em direção a setores sociais que mais tarde seriam incluídos na qualidade do que hoje chamamos aliados, especialmente associações voltadas para direitos humanos, agremiações políticas progressistas e até mesmo igrejas, que naquele momento já começavam a pensar na possibilidade de uma teologia inclusiva e queer, como a Christian Metropolitan Church, inaugurada em Toronto dois anos depois pelo reverendo Bob Wolfe.

Ostentando um verdadeiro caleidoscópio de pautas, The Body Politic chegou a ser distribuída em 21 cidades canadenses, em um momento onde qualquer possibilidade de afirmação LGBTQ era minimamente um arriscado desafio. Ed Jackson, um dos editores da revista, foi processado em 1978, acusado de “difundir material imoral e indecente”. Uma das razões da controvérsia jurídica foi o artigo “Men Loving Boys Loving Men”, escrito por Gerald Hannon, um dos mais prolíficos colunistas da Body Politic.
Desde a sua primeira edição, em um volume de 20 páginas, a revista não apenas registrava a história comunitária canadense, que estava acontecendo ao vivo e a cores naquele mesmo ano – especialmente após o episódio da marcha ao Parlamento –, como também seus editores compreenderam que uma interessante combinação jornalística seria necessária: articular notícias sobre as atividades das associações LGBT canadenses com a promoção da cultura e da reflexão, enquanto instrumentos do que naquele momento chamava-se amplamente de Gay Liberation.
Nesse sentido, há uma insistência pujante do coletivo editorial na criação de pautas sobre cinema, literatura, arte, história e política, como temas importantes a serem discutidos por ensaístas e intelectuais originários diretamente da comunidade gay, lésbica e trans do país. Para isso foi necessária a criação de uma editora própria que viabilizasse as tiragens da revista, a Pink Triangle Press, criada em 1975 – que em 1984 lançaria outra famosa publicação, o Xtra! –, dedicada a compilar a plêiade de eventos culturais e de entretenimento que atravessava a vida LGBTQ canadense já na década de 1980.
O historiador Nicholas Andrew Hrynyk defendeu, na Universidade de Carleton em 2018, uma formidável tese de doutorado sobre a Body Politic intitulada “Pin the Macho on the Man: Mediations of Gay Male Masculinity in The Body Politic, 1971-1987”. Neste trabalho o pesquisador reconhece que a revista configurou uma plataforma de expressão para os seus leitores capaz de desencadear novas performances sociais, que envolviam elementos como raça, gênero e a influência que a heteronormatividade exercia naquele momento sobre a comunidade gay masculina canadense.
Recentemente, o dramaturgo Nick Green homenageou a revista com a peça teatral “Body Politic”, uma provocadora dramaturgia de duas horas, que não apenas lançava luz sobre o papel pioneiro da publicação na história da comunidade 2SLGBTQIA+ canadense, como igualmente levantava questões acerca do diálogo (ou da sua ausência) entre as diferentes gerações de ativistas gays no país. Green utilizou o palco para despertar nos expectadores a conscientização acerca desta arrojada iniciativa jornalística, que contribuiu para o empoderamento e para a gay liberation no Canadá, e que neste ano de 2021 comemora 50 anos de sua fundação. Apesar de não circular mais desde 1987, não restam dúvidas de que o legado da Body Politic deve ser preservado, não apenas para o bem das futuras gerações de LGBTQs, mas para que nunca esqueçamos de que muito se fez, na lata e na luta, para que as vitórias de hoje sejam o trampolim para as de amanhã.
Celebremos!
Você pode ler algumas das edições originais AQUI.
Lindo trabalho de resgate. Parabéns!
Parabens André, amei o artigo. Happy Pride! 🌈👏🏻🏳️🌈💕