Harriet Tubman: a abolicionista de Maryland e sua conexão com a história canadense

André Sena é doutor em História Política pela UERJ
Da série “Flashes da História Canadense”
Agora em fevereiro, as instituições culturais e educacionais do Canadá celebram o Mês da História Negra Canadense. Com isso, somos convidados a nos informar e refletir acerca do legado histórico imenso que vem sendo construído há séculos por mulheres e homens negros no Canadá, nas suas mais variadas dimensões. Seja no campo da atuação militar, nas batalhas que envolveram a Guerra de 1812 (e em muitas outras até a Segunda Guerra Mundial); no campo dos direitos civis, como foi o caso da empresária negra canadense Viola Desmond em 1946, ou na construção de comunidades históricas do quilate de Africville na Nova Escócia; a população negra canadense consiste inelutavelmente em uma parte indelével da história e da cultura do país.
A história do Canadá possui profundas conexões com as dinâmicas políticas e culturais do que chamamos por aqui de “o Sul da fronteira”, ao nos referirmos aos Estados Unidos. Nesse sentido, o recém empossado presidente estadunidense Joe Biden retomou a iniciativa de promover políticas de Estado para o combate ao racismo estrutural em seu país. Como marco inaugural desse novo momento, a Administração Biden/Harris sugeriu que se homenageie a líder abolicionista americana Harriet Tubman (1823-1913) na nota de 20 dólares, colocando-a no lugar do presidente Andrew Jackson, que atualmente figura nas cédulas em questão.
Naturalmente poderíamos reduzir nossas reflexões à iniciativa de Biden de substituir um ex-presidente notoriamente escravocrata por uma mulher, líder abolicionista e grande vulto da história da espionagem nos Estados Unidos. Sob o codinome masculino de “Moses”, uma referência ao líder bíblico que conduziu escravos hebreus para a liberdade, Harriet Tubman aparece em uma de suas fotografias clássicas como “enfermeira, espiã e batedora”. Todas estas três atividades perigosíssimas foram executadas heroicamente por Tubman durante a Guerra Civil Americana, ocorrida entre os anos de 1861 e 1865.

A essa altura do texto o leitor deve estar se perguntando onde o Canadá entra nisso. A resposta é tão simples quanto um convite: quando puder, visite a Harriet Tubman Canadian Church, na 92 Geneva Street, em St. Catharines (Ontário), e tudo lhe será revelado. Enquanto isso não ocorre, vejamos: com a Guerra de Independência dos Estados Unidos, ocorrida na segunda metade do século XVIII, o fluxo migratório de mulheres e homens negros entre Nova Iorque e Halifax intensificou-se sobremaneira. Isto se deveu a duas coisas: a possibilidade de o Império Britânico perder suas 13 Colônias para sempre – o que ocorreu a duras pedras entre 1756 e 1813 –, e a da Inglaterra abolir a escravidão em seu território e colônias remanescentes, de Bristol a Kingston, chegando a América do Norte Britânica, nome que o Canadá assumiu até 1867. As duas coisas ocorreram a seu tempo.
Os Estados Unidos se tornaram independentes da Inglaterra, com a Declaração de 4 de Julho – o que teria ainda que ser consolidado com intenso esforço político e militar –, e em 1 de Agosto de 1834 a escravidão passava a ser ilegal no Canadá, o que seria implementado com muito esforço político e não sem a mobilização – a prática do petit marronage como ato de resistência negra tipicamente canadense, pouco antes da abolição, por exemplo – e intensa pressão negra. Uma Abolição que veio acompanhada de todos os obstáculos possíveis a uma emancipação negra por aqui, como as quase instransponíveis possibilidades de aquisição de terras e propriedades por negros e negras, e a inserção dos libertos na sociedade canadense, esta ainda em franco processo de síntese e construção.
Como incremento dessa complexa trajetória em busca de autodeterminação de toda uma comunidade, temos a figura de Harriet Tubman, que transformou seus ofícios de espiã, batedora, e de seu idealismo abolicionista em ferramentas concretas para a condução de milhares de pessoas escravizadas nos Estados Unidos rumo ao Canadá, onde a escravidão havia já sido abolida. Ninguém conheceu melhor do que ela as rotas de fuga dos Estados Unidos na direção do “Verdadeiro Norte”. A famosa Underground Railroad era na verdade uma imbricada e complexa rede de rotas de fuga dos Estados Unidos para cá, hoje cantada e imortalizada pela poesia Follow the Drinking Gourd, expressão que na verdade era um código secreto elaborado pelos negros e negras abolicionistas como Tubman para se referirem à constelação Ursa Maior, que os ajudava a se orientar territorialmente na direção norte, rumo ao Canadá. Recomendo muito que o leitor ouça a gravação de Eric Bibb, que pode ser encontrada no Youtube:
Well, where the great big river meets the little river
Follow the drinkin’ gourd
The old man is waiting to carry you to freedom
Follow the drinkin’ gourd
Todo esse processo da trajetória da maior abolicionista de todos os tempos foi antecedido pela vida que Tubman construiu a partir de 1851 em St. Catharines, um dos mais conhecidos pontos de chegada da Underground Railroad. Aqui, Tubman apoiou e fundou sociedades beneficentes abolicionistas que arrecadavam fundos para o traslado de escravos em fuga em rumo ao Canadá, como a Aid Society of St. Catharines. Além disso, Harriet participou na fundação de igrejas, como a Zion Baptist Church e a African Methodist Episcopal Church, comunidades de fé que atuaram de forma intensa na facilitação e absorção de escravos que buscavam a liberdade em terras canadenses.
Os fundamentos da atividade comunitária e a militância pelos direitos humanos que Tubman exerceu de forma contundente em Ontário foram ingredientes essenciais para que ela se alistasse no exército americano contra os escravocratas da Carolina do Sul, no início da Guerra Civil. E será precisamente no meio das operações de Guerra que a mulher de muitos nomes e codinomes, Harriet Tubman, Araminta Ross, “Minty”, “Moses”, forjará um legado de lutas pela liberdade que fizeram com que o Governo do Canadá decretasse, em 1990, que a partir daquele ano ela seria considerada Pessoa de Significância Nacional, reconhecendo não apenas seu legado histórico, mas a importância de seu vulto para as futuras gerações de canadenses.
Maravilha! Não tinha conhecimento sobre o mês da História Negra Canadense nem sobre a vida da Harriet Tubman. Um ícone sem dúvida.
Poxa, André. A história dessa muher é fascinante. Uma verdadeira abolicionista. Parabéns pelo texto.
Fascinante Professor André! Fiquei super interessada no movimento abolicionista canadense!