Efeito Minneapolis

Será necessário mudar o nome de algumas ruas de Toronto?

André Sena é doutor em História Política pela UERJ

Da série “Flashes da História Canadense

“Seja como farsa ou como tragédia, a História tende a se repetir”, diria uma das cabeças pensantes mais desafiadoras do século XIX, o filósofo Karl Marx. Embora a frase tenha sido mal interpretada e muitas vezes distorcida (como boa parte do que escreveu Marx) ela serve de chave para compreendermos os impactos do que aconteceu recentemente em Minneapolis, Estados Unidos, e o fortalecimento do movimento Black Lives Matter, tanto no sul da fronteira como aqui no Canadá.

Os protestos públicos que ganharam as ruas de Nova Iorque, São Paulo, Buenos Aires e Toronto contra a truculência que levou à morte George Floyd em junho deste ano vieram acompanhados da formulação de uma nova estratégia de crítica histórica encabeçada por alguns movimentos sociais importantes no cenário internacional, especialmente questionando a existência de alguns monumentos públicos.

Uma estátua de Colombo foi decapitada nos Estados Unidos, e no sul do país um monumento aos chamados Confederados foi retirado de praça pública; a estátua de Leopoldo II, um dos mais controversos monarcas europeus, acusado de racismo e imperialismo, foi retirada da vista de todos na Bélgica; a polêmica estátua do bandeirante Borba Gato teve sua existência questionada em São Paulo. No Reino Unido, o monumento ao comerciante de escravos Edward Colston foi derrubado e até mesmo o fundador do escotismo Robert Smith Baden-Powell está em uma lista de monumentos questionáveis.

O debate chegou a Toronto de forma avassaladora e por aqui além de monumentos públicos (como a estátua de Eduardo VII no Queens Park) nomes de ruas como Dundas, Brant e Ryerson foram alvos de crítica, na medida em que se passou a questionar a legitimidade de se homenagear estes personagens da história canadense.

Estátua de Egerton Ryerson em Toronto, pintada de rosa em 18 de julho. Foto: Martin Reis.

Muitos historiadores, dentre os quais me incluo, veem com bons olhos e até mesmo entusiasmo esse questionamento. Uma sociedade que é incapaz de questionar seus próprios mitos consolida-se como uma comunidade historicamente doente e socialmente perversa. Entretanto, muitos desses mesmos historiadores (aos quais também me somo) desejam que a atual onda crítica pós-Minneapolis seja mais capaz de nos ensinar do que exatamente destruir.

É preciso substituir um certo ardor iconoclasta pela capacidade de criarmos instrumentos educativos eficazes para o grande público olhar de forma crítica a própria ideia de “monumento”, “homenagem” e “legado histórico”. Isso é muito desafiador para todos nós, educadores, artistas, gestores e grande público.

Tomemos o caso de Samuel Peters Jarvis. Ring a Bell? A Jarvis Street tem esse nome em sua homenagem. Personagem típico da virada do século XVIII para o XIX, Jarvis fazia parte do círculo conservador que dominava a política de York (Toronto) e que conhecemos como oligarquias familiares (family compact na historiografia canadense).

Retrato de Samuel Peters Jarvis (1792-1857), c.1850, Baldwin Collection, Toronto Public Library.

Controverso, Jarvis teve suas ambições políticas frustradas pela competição de outras oligarquias (como a poderosa família Rideout por exemplo) mas também por seu comportamento explosivo e agressivo.

Fez carreira como gestor do Departamento de Negócios Indígenas e impôs acordos absolutamente injustos com First Nations, obrigando-os praticamente a trocar suas terras férteis por terras de reserva tragicamente incultiváveis. Além disso, há registro de que ele tenha possuído escravos – ou, como atualmente muitos de nós historiadores sugerimos, que ele tenha escravizado pessoas.

A grande questão que ressurge do sufocamento de George Floyd em Minneapolis é justamente a do merecimento desses vultos históricos: eles são realmente dignos de serem homenageados? Como um First Nation historicamente consciente se sente ao caminhar pela Jarvis nos dias de hoje? Como um negro que conheça a história de Samuel Peters Jarvis e seu posicionamento escravocrata sente-se andando por esta rua famosa de Toronto?

Quanto mais formos capazes de estudar história a partir de uma perspectiva crítica, mais desafios como esses se colocarão diante de nós.

Sobre André Sena (16 artigos)
André Sena é Doutor em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, professor de História e Relações Internacionais e atualmente desenvolve pesquisa sobre Relações Diplomáticas Brasil-Canadá e História do Brasil Contemporâneo.

4 comentários em Efeito Minneapolis

  1. Excelente artigo, parabens!

  2. Importante debate!

  3. jeanette b. erlich // 21 de julho de 2020 às 4:08 pm // Responder

    Contanto que ao destruirmos as estatuas não sejam esquecidos os exemplos negativos.

  4. Bravo!!!

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