Da “Operation Soap” aos dias de hoje

Muito o que lembrar, celebrar e lutar

Pride Parade Toronto em 2015. Foto: Rafael Salsa Correa.

André Sena é doutor em História Política pela UERJ

Da série “Flashes da História Canadense

Este mês nos apresenta uma efeméride absolutamente incontornável para a comunidade 2SLGBTQIA+ no mundo inteiro. A partir de um episódio conhecido como a Revolta do Stonewall Inn, ocorrida em Nova Iorque no dia 28 de junho de 1969, o período de 30 dias do sexto mês de cada ano é atravessado por comemorações, palestras, marchas e protestos de toda sorte pela liberdade de ser quem somos e como somos.

Naturalmente o leitor deve estar estranhando a quantidade enorme de letras que compõem a sigla do primeiro parágrafo. Estamos mais habituados com expressões como Comunidade Gay ou Comunidade LGBT. Entretanto o número cada vez maior de letras adicionadas à sigla remonta a uma tradição que consiste no espírito essencial do Mês do Orgulho: a da INCLUSÃO.

Todas as vezes em que uma minoria ou grupo com afinidades próprias faz a sua voz ser ouvida dentro dos movimentos sociais pelas liberdades sexuais, especialmente nos Estados Unidos e Canadá, uma letrinha a mais é adicionada, como se fosse uma estrela em uma bandeira, com mais brilho, mais cor e mais uma voz somada a de milhões de pessoas que não tem ainda no mundo o direito de expressar livremente seu afeto, e são perseguidas em função de suas orientações sexuais.

Naturalmente Toronto, um dos centros mais cosmopolitas do mundo, não poderia deixar de ser um dos palcos históricos dessa luta iniciada pela “Comunidade LGBT” na segunda metade do século XX. Das mensagens elegantes e tímidas da Mattachine Society na Greenwich Village da década de 1960, passando pelo Fightback Stonewall, as ondas de mudanças chegaram imediatamente ao Canadá, protagonizadas pelas primeiras formações de grupos de acolhimento e direitos em Ontário. Foram 22 anos de amadurecimento coletivo em Toronto, até que em 6 de fevereiro de 1981 um incidente daria o pontapé para um divisor de águas na história da cidade… e do Canadá inteiro.

Nesta data, a polícia de Toronto se preparava para uma operação de repressão e apreensão em bares e saunas gays da cidade, da qual se arrependeria oficial e publicamente apenas 35 anos depois. A operação foi batizada de “Operation Soap”, configurando o caráter higienista e preconceituoso que alimentava o espírito das instituições de segurança pública daqueles tempos. Ver hoje na Gay Pride de Toronto, policiais gays, lésbicas e transgêneros desfilando ao nosso lado mostra como valeu a pena ter se levantado naquela noite do início dos anos 80.

Ao invadir diversas saunas gays de Toronto, surpreendendo centenas de pessoas na mais absoluta exposição e privacidade (306 pessoas foram presas), a truculência policial se mostrou absolutamente nua e crua. Um dos testemunhos mais comoventes da época é o de Duncan McLarren, que ouviu de um dos oficiais de polícia a frase abaixo, em uma clara alusão aos campos de extermínio nazistas de 40 anos antes na Alemanha: “Eu lamento muito que não tenhamos autorização para transformar as duchas dessa sauna em dutos de gás”.

Muitas pessoas que passaram por momentos como aqueles naquela noite (e até mesmo em episódios menos visíveis anteriores) não se recuperaram até hoje do trauma, e juraram nunca esquecer e jamais perdoar o ocorrido.

A diferença da Operation Soap para outras “incertas” policiais pregressas em Toronto é que naquele momento os movimentos pela liberdade e direitos da Comunidade LGBT já completavam duas décadas de aperfeiçoamento e a reação dos mesmos foi imediata, pegando as instituições de surpresa como nunca antes na história do Canadá. Nas semanas seguintes marchas foram organizadas na Yonge Street, inclusive à noite, permitindo que as pessoas que trabalhavam durante o dia pudessem aderir a um movimento que chegou a reunir mais de 2000 pessoas, número bastante expressivo para a época.

Pride Parade Toronto, em 1981. Foto: C. Dobie.

Toronto saía finalmente do armário, liderada por mulheres LGBT históricas, como Chris Bearchell, e a trajetória da comunidade LGBT na cidade jamais seria a mesma. Novos espaços de sociabilidade foram gradualmente (e arduamente) conquistados e uma territorialidade gay foi aos poucos sendo construída, fazendo da maior cidade de Ontário um dos lugares mais abertos à comunidade LGBT do mundo. A Church Street, localizada em uma região carinhosa e orgulhosamente conhecida pela Comunidade como a “Gaybourhood”, é um exemplo concreto disso, com livrarias que promovem encontros e palestras, cafés, bares e boates que formam um mosaico de expressão e legado não apenas local como nacional.

Pride Parade Toronto, em 1981. Foto: C. Dobie.

Foi no mesmo ano de 1981, no mês de junho, que Toronto organizou sua primeira Gay Pride Parade, somando-se à agenda internacional da Comunidade 2SLGBTQIA+. Apesar da insistência da polícia em continuar essas operações por anos ainda, em 1991 a Municipalidade de Toronto reconhecia oficialmente a Parada do Orgulho LGBT como parte de seu calendário oficial. Desde então milhares de pessoas vêm a Toronto em junho para participar das comemorações e da Marcha, e mesmo em tempos de pandemia, centenas de Gay Pride virtuais estão sendo organizadas em todo o Canadá.

Em 2016, a Polícia de Toronto reconheceu publicamente a brutalidade e barbárie da Operation Soap de 1981, pedindo desculpas aos cidadãos LGBT de Toronto pelo ocorrido.

E assim comemoramos esse mês de junho, de cara ao sol e sem medo de sermos felizes, mas ao mesmo tempo atentos e fortes pelo muito que temos ainda que fazer para que a INCLUSÃO das letrinhas intermináveis do primeiro parágrafo seja de fato uma realidade concreta em direitos e liberdade, e possamos constatar – como a grande poeta da cidade de Toronto Dionne Brand declara nos versos de “From Thitsty”:

“This city is beauty
unbreakable and amorous as eyelids.”

Happy Pride para tod@s nós.

Sobre André Sena (16 artigos)
André Sena é Doutor em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, professor de História e Relações Internacionais e atualmente desenvolve pesquisa sobre Relações Diplomáticas Brasil-Canadá e História do Brasil Contemporâneo.

1 comentário em Da “Operation Soap” aos dias de hoje

  1. Parabens querido pelo artigo, MUITO bom, amei … HAPPY PRIDE EVERYONE, Arnon Melo

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