Marias, Mahins, Marielles, malês

A regulação da vida e da morte no Brasil contemporâneo.

Maria Clara de Sena. Foto: Pablo Saborido_Revista Cláudia

Mariana Thorstensen Possas é professora do departamento de Sociologia da Universidade Federal da Bahia e pesquisadora visitante na Universidade de Toronto

& Karla Matias é mestre em administração pública pela Universidade de Ottawa

Marielle Franco. Negra, moradora da periferia da cidade do Rio de Janeiro, pobre e lésbica. Socióloga de formação, mestre em administração pela Universidade Federal Fluminense, vereadora do PSOL no Rio de Janeiro e defensora dos direitos humanos. Em 14 de março de 2018, durante o período da intervenção militar no estado do Rio de Janeiro, foi assassinada pela milícia, segundo indicam as investigações oficiais até o momento. As razões da morte ainda não estão claras, mas já temos elementos suficientes para afirmar que está muito provavelmente ligada a divergências políticas e a sua militância.

Maria Clara de Sena. Negra, nascida na zona da mata de Pernambuco, pobre e trans. Bacharel em Serviço Social, integrante do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura no estado de Pernambuco, previsto no Protocolo Facultativo à Convenção Contra a Tortura das Nações Unidas. Ganhou o Prêmio CLAUDIA 2016, na categoria “Políticas Públicas”, dentre outros prêmios. Após receber ameaças de morte de um agente penitenciário durante uma visita à serviço do mecanismo, por defender direitos humanos de presos, deixou o Brasil e vive como refugiada no Canadá, desde 2016.

Marielle e Maria Clara. Morte e vida relacionadas aos direitos humanos e ao tipo de militância que eles embasam e justificam. No Brasil, a luta cotidiana pelos direitos humanos, especialmente para quem fala deles a partir da periferia, pode ser uma atividade extenuante e arriscada, e resultar em mortes violentas. Marielle e Maria Clara são dois exemplos desse fenômeno brasileiro. Por serem quem eram, e por defender os direitos de quem defendiam, colocaram suas vidas em risco.

Maria Clara de Sena.

No Brasil contemporâneo, defender o direito de LGBT não serem torturados e mortos, ou o direito de crianças e jovens negros das periferias não serem mortos durante operações policiais ordinárias, rende ameaças de morte. Os fatores determinantes para o risco da morte se tornar realidade, como nos casos de Marielle e Maria Clara, estão ligados ao “lugar social” que ocupam: negras, pobres, moradoras de periferia, lésbica e trans. Ou seja, negras, pobres, defendendo o direito de outros negros e pobres. Não foram perdoadas por isso.

A luta pela demarcação de terras e pelo respeito à cultura e às tradições dos povos indígenas é um outro exemplo de bandeira de direitos humanos, cuja luta implica muitas vezes em colocar a vida e a integridade física em risco. Surpreendentemente para nós cidadãos e cidadãs do século XXI, a proteção ao meio ambiente, em suas várias esferas e dimensões, é hoje também uma bandeira das mais perigosas, dependendo de onde e contra quem a militância é destinada.

Mas há um aspecto dessa violência como fenômeno do Brasil contemporâneo que vale a pena destacar. Assistimos nos últimos anos, tanto no discurso oficial do governo e de governantes, como expresso em mídias tradicionais e sociais, à crescente disposição em atacar explicitamente os direitos humanos, enquanto ideias e valores, assim como nas pessoas de seus defensores e militantes. O que temos então contemporaneamente é o movimento de explicitação e legitimação do ataque aos direitos humanos.

Os defensores de direitos humanos são, em muitas dessas comunicações políticas e midiáticas, representados como inimigos, como desonestos, como “doutrinados”. E as lutas que eles encarnam são tratadas com desconfiança e desprezo; afinal, quem defende “bandido” não pode ter a confiança do “cidadão de bem”. E assim, a interpretação de situações complexas vira uma simplista disputa entre o bom e o mau, o mocinho e o bandido. O discurso que deveria ser construtivo e emancipador (os direitos humanos) se torna razão de disputa, de ódio e de morte. Como em muitos outros conflitos no Brasil, a resolução do embate não se dá por meio do diálogo, nem da justiça, mas “na bala”. E, enquanto isso, o Brasil permanece, segundo várias organizações internacionais (Global Witness, Human Rights Watch, Anistia Internacional), entre os países que mais matam defensores de direitos humanos e ambientais no mundo.

Human sapiens

Sérgio Santos Barbosa é poeta

 

Maria Clara disse, eu estava lá no Drom,

apreciando o bom, ouvi,

“… afoxé não é moda, é certeza.”

como o espírito da arte

em qualquer parte é o desapego,

maturidade,

saber conviver,

viver com o entendimento mediante o outro,

a qualidade,

atributo genético estético que acrescenta,

agregar-se valor e comportar-se acessível,

elevar-se o nível,

melhor é ser cowboy,

o lado bom de ser bandido,

viver em imenso bando-humanidade em profusão,

em multidão incrível,

doar-se o braço e a mão,

disponibilidade ao pão,

jamais à falta alheia dizer “não”,

velada sutileza,

vide como em bula a compaixão, receita,

abrir-se espaço ao outro,

oferecer o próprio passo,

completar no amplexo

o forte acalentador abraço,

amar escancarar sorriso,

compartilhamento a favor do bem,

junto desafiar e enfrentar o tempo

e de cara-a-cara dizer venha!, ao vento,

saber no outro o melhor como antepasto ao alimento,

que enfim sustenta almas,

todas, no intervalo ao cansaço.

amém.

Obrigado, Maria Clara de Sena.

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