Natal sem vó

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Cristiano de Oliveira é colunista do Jornal de Toronto

Quem acompanhou minhas colunas ao longo desses 15 anos em jornais brasileiros de Toronto provavelmente notou, em torno das festas de fim de ano, que a minha avó sempre aparece nos meus textos. Afinal, o Natal com vó é uma tradição que eu criei naquele meu mundinho de imigrante recém-chegado, carregado de saudades, expectativas e uma enorme culpa por deixar pra trás aqueles que mais me amam. Eu disse a ela que no Natal voltaria, e ao mesmo tempo prometi que não passaria um Natal sequer sem ela. Ao comemorar através dos meus textos a conquista de cada Natal com vó, eu acabei a transformando numa personagem, meio que simbolizando o amor pelo que deixamos de mais importante por lá, e que não importa o tamanho da vitória alcançada no exterior, sua ausência nunca permitirá que a celebração esteja completa.

Quando digo “conquista” de um Natal com vó, não estou brincando. Todo ano é uma luta diferente. Quando não é dinheiro, é um chefe que não quer me liberar. É festão de fim de ano por aqui, ou uma viagem bacana, de que abri mão. Foi muito choro no aeroporto abraçado à companheira, ambos resignados ao fato de que jamais passaríamos um Natal juntos. E imagine naquela terceira entrevista de emprego, quando você já está discutindo salário e férias, ter que dizer pro empregador: “Então tá tudo certo, Seu Coisinha, mas já avisando que no Natal eu não tô aqui não, viu?”. Ainda não sei de onde tiro essa coragem, mas sempre coloquei aquilo na mesa com tanta convicção que o povo deve ver como um motivo religioso, tipo viajar pra Meca ou coisa assim. Enfim, sempre deu muita encrenca, mas sempre venceu a resistência. São 18 Natais morando em Toronto, 18 Natais passados no Brasil com vó.

E ela esperava com a força que adversidade nenhuma conseguiu derrubar. Nem a emigração do Líbano por semanas em um navio, nem a vida sofrida no novo país – diz a lenda que o padre Júlio Maria de Lombaerde, hoje em processo de beatificação, um dia se aproximou curioso daquela vendinha já aberta às 4 da manhã e iluminada por velas. Como ele conversou com a minha bisavó eu não sei, pois o português dela sempre foi péssimo, mas descobriu que meu bisavô servia o exército no Líbano e o pouco dinheiro não permitia que as seis meninas fossem à escola. O padre então conseguiu bolsas de estudo para todas elas, que puderam enfim estudar, mas sem moleza, pois seriam párias por toda a vida escolar: as seis crianças bolsistas eram retiradas da sala de aula em momentos esporádicos para fazer serviços gerais. Mas nada a derrubou. Nem a infância, nem as mazelas da idade adulta. Foi ela que derrubou o mundo, e daí resolveu parar pra descansar.

Em agosto, veio a ligação que eu mais temi ao longo de todos esses anos. Você reza, pede, bate na madeira só de pensar, mas a ligação um dia vem, e eu fui ao Brasil correndo responder à pergunta que ela sempre me fez: “Quando você volta?”. Pois voltei, e antes do Natal, pra segurar a mão dela e dizer, mesmo sem saber se ela me ouvia, que não passou uma noite em quase 20 anos em que, antes de dormir, eu não pensasse nela e na família que ela criou ao seu redor.

Quase todo o texto foi escrito no presente de propósito, pois o Natal com vó não acabou. Ela não vai estar mais lá, e isso vai doer muito, mas eu não posso infligir saudades de mim àqueles que, como eu, já têm sofrimento demais com a saudade dela. A pergunta da minha avó sempre terá resposta, e é o mínimo que eu posso fazer além de tratar da dor.

Adeus, cinco letras que choram.

Sobre Cristiano de Oliveira (30 artigos)
Cristiano é mineiro, atleticano de passar mal, formado em Ciência da Computação no Brasil e pós-graduado em Marketing Management no Canadá. Foi colunista do jornal Brasil News por 12 anos. É um grande cronista do samba e das letras.

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