“Sou como um espelho do meu povo. Eu me reconheço nele e ele se reconhece em mim.”

O cantor Alceu Valença concedeu entrevista exclusiva ao Jornal de Toronto.

O cantor Alceu Valença, em ilustração de Valf.

Alexandre Dias Ramos é editor

Jornal de Toronto – Aqui na comunidade brasileira de Toronto temos já uma tradição musical muito ligada à cultura pernambucana; prova disso é termos três grupos de maracatu bastante atuantes. Na sua visão, ao que se deve essa força da cultura nordestina?

Alceu Valença – Fico muito feliz que a pluralidade da arte e da cultura do Nordeste se estenda por diversas partes do planeta. Não sabia que havia grupos de maracatu tão consolidados em Toronto, como você me informa agora. É a cultura do Nordeste litorâneo, da zona da mata, com predominância da influência indígena e africana, diferente do sertão e do agreste, onde nasci, que possui uma presença mais arabesca, mourisca, ibérica. No litoral do Nordeste havia uma presença africana mais proeminente, por conta das lavouras de cana-de-açúcar, então os elementos percussivos acabam sendo marcantes na música que ali se desenvolveu – como por exemplo o maracatu, os caboclinhos e até mesmo a ciranda. No semiárido houve o que chamamos de civilização do couro, onde o canto dos vaqueiros gerou um gênero chamado aboio. Ali surgiram também as toadas, os galopes, martelos agalopados, o xaxado, as bandas de pife, os violeiros e emboladores, os poetas de cordel. Tudo isso acabou gerando a cultura do forró, do baião, do xote, estilizados principalmente por Luiz Gonzaga.

Hoje percebo que o forró, por exemplo, também está se espelhando pelo mundo. Há diversos festivais dedicados ao gênero na Europa: na França, na Espanha, na Alemanha, na Rússia, em Portugal, onde fui homenageado recentemente pelo Forró de Lisboa. Costumo dizer que o Brasil precisa redescobrir sua trilha sonora, que anda meio esquecida em nossa terra. É assombroso, e também estimulante, que outros países a estejam valorizando da maneira como acontece atualmente. Espero que o público de Toronto e do Canadá em geral possa comparecer em peso no show que faremos no dia 4 de agosto no Liuna Local 183. Será um show inteiramente dedicado à identidade brasileira, em especial à nordestina.

JdeT – O que você busca passar com suas letras? A mensagem foi mudando durante sua trajetória musical?

Alceu – Em mim, o poeta veio antes do músico. Minha família acreditava que os filhos de meu pai, Décio Valença, que foi procurador do estado de Pernambuco, não tinham jeito para a música. Como ele era desafinado, pensavam que os filhos dele também o seriam. Meu avô Orestes, que tocava violão e bombardino, dizia que eu não tinha ritmo. Então, durante muito tempo eu acreditei que não levava mesmo jeito para a coisa. Mas o tempo tratou de mostrar ao meu avô que ele estava errado [risos]. Havia também a preocupação de que nós seguíssemos uma profissão considerada séria, para não acontecer conosco o que ocorrera aos parentes mais boêmios em São Bento do Una, minha cidade. Eles acabavam dependendo financeiramente daqueles que seguiam o Direito, a Medicina ou que trabalhavam no comércio.

Meu pai não permitia que tivéssemos radiola em casa e isso fez com que eu jamais tivesse o hábito de ouvir música. Já o gosto pela poesia e pela literatura era sempre incentivado. Desde muito jovem eu lia Fernando Pessoa, Drummond, Rubem Braga, e já publicava meus poemas nos cadernos de cultura dos jornais do Recife, muito antes de me aventurar a ser músico. Ganhei meu primeiro violão, dado por minha mãe, escondido de papai, somente aos 16 anos. Estudei na Faculdade de Direito do Recife, para agradar meu pai, e quando eu tocava as músicas do sertão sentia um preconceito muito grande por parte do pessoal da capital. Todos queriam escutar rock ou tropicalismo ou bossa nova, era como se as músicas de Luiz Gonzaga fossem ultrapassadas para aquele pessoal.

Curiosamente, foi quando fiz um curso de verão na Universidade de Harvard, nos EUA em 1969, que decidi me tornar artista de verdade. Levava meu violão para a praça e cantava os forrós, xotes e martelos que o pessoal do Recife detestava. Os hippies e hare krishnas dançavam ao meu entorno e começava a juntar gente. Um jornal local chegou a me chamar de “o Bob Dylan brasileiro”, porque eu dizia que fazia protest songs. E eu nem falava inglês nem nunca havia escutado Bob Dylan em toda a minha vida [risos].

No mais, sempre fui muito fiel às minhas origens, às minhas convicções e à minha poética. Durante a década de 70, por conta da censura, elas precisavam ser mais metafóricas. Eram coisas como “terno de vidro costurado a parafuso / papagaio do futuro / num para-raio ao luar”. Depois disso, minhas letras foram se tornando mais populares, sem deixar a elaboração de lado. Todo mundo entende um verso como “Tu vens, tu vens, eu já escuto os teus sinais” ou “morena tropicana / eu quero o teu sabor”. E essas músicas acabaram ficando eternas por falarem direto ao coração do público. Como costumo dizer, sou como um espelho do meu povo. Eu me reconheço nele e ele se reconhece em mim.

O cantor pernambucano Alceu Valença. Foto: Aline Camargo_Maranhas Filmes_Ascom Tropicana Produções.

JdeT – O Brasil agora perdeu seu Ministério da Cultura e algumas instituições e artistas têm começado a sofrer com cortes de apoio e patrocínio. Você sente que isso, de alguma forma, interfere no seu trabalho?

Alceu – Artistas como eu, que possuem um público muito consolidado, sofrem menos os efeitos não só destas alterações, mas de toda uma mudança de paradigma que acontece, por exemplo, na indústria da música depois da chegada da internet e, mais recentemente, com a substituição da mídia física pelo streaming e as mídias digitais. Hoje é mais complicado você emplacar um hit, pois as mídias tradicionais possuem uma influência bem menor sobre o público. Mas é preciso se adaptar aos novos tempos. Jamais me utilizei de leis de incentivo, mas entendo que estas sejam importantes para o desenvolvimento de jovens artistas e também para determinados projetos de artistas conhecidos.

Parece haver certa perseguição aos agentes culturais, uma falta de conhecimento da importância fundamental da arte e da cultura na constituição da identidade de um povo. No caso do Brasil, isto é muito evidente, as diferenças regionais são essencialmente acompanhadas por suas diversas manifestações culturais. E há também a Economia Criativa, um preceito indispensável nos dias de hoje. Quando um artista faz um show, há toda uma rede de pessoas beneficiadas. Além dos músicos, dos técnicos, dos produtores, os hotéis faturam, o comércio fatura, o ambulante fatura, a coisa vai muito além do simples ato de o artista subir no palco e cantar para o público. No meu caso, eu canto para expressar minha identidade, a identidade da minha região, do meu país. Como diria o filósofo Ortega y Gasset, “eu sou eu e as minhas circunstâncias”.

JdeT – Sua música é parte da história do nosso país, não apenas como trilha, mas também como agente de transformação, seja por ter ajudado tanto na valorização da música nordestina, seja pela qualidade das letras ou por sua atividade como cantor. Nesses últimos tempos, seu ativismo tem sido fundamental na defesa de nosso país. Quais as consequências, positivas e negativas, de sua postura política?

Alceu – Como disse, no início da minha carreira eu precisava fazer letras metafóricas para fugir da censura. Na época em que gravei meu primeiro disco, em dupla com Geraldo Azevedo, fizemos uma canção de amor chamada “Talismã”. Não tinha nada de rebeldia, de transgressor, nada disso. Tinha um verso que dizia: “Joana me dê um talismã / viajar / você já pensou em mais eu viajar?”. A censura implicou. Fui pessoalmente ao departamento conversar com o censor. Ele dizia: “Joana é marijuana e viajar é uma referência à maconha”. Eu, que nunca fumei maconha, nem pensei em nada disso quando fiz esta letra, argumentei: “e se eu trocar Joana por Diana, a caçadora?”. O censor coçou a cabeça e disse: “Diana, tudo bem, sendo assim está liberada” [risos]. Pouco depois fui convidado a compor uma música para a novela Gabriela, inspirada no romance de Jorge Amado. Fiz “São Jorge dos Ilhéus” que tinha uma letra mais provocativa e fazia referência aos coronéis do cacau no Nordeste. A censura vetou. Em vez de escrever uma nova letra, optei por voltar ao estúdio e emitir uns gritos alucinantes, grunhidos, algo que expressava angústia, quase um desespero. A música foi liberada e entrou na novela assim mesmo – somente com a base e os gritos. Com a volta da democracia, nossas preocupações se tornaram mais abrangentes, falavam direto ao coração das pessoas. No mais, é como digo em uma das minhas músicas: “tomara / meu Deus tomara / uma nação solidária / sem preconceitos, tomara, meu Deus”.

O cantor pernambucano Alceu Valença. Foto: Dewis Caldas_Maranhas Filmes_Ascom Tropicana Produções.

Sobre Alexandre Dias Ramos (27 artigos)
Alexandre é editor-chefe do Jornal de Toronto, mestre em Sociologia da Cultura pela FE-USP, doutor em História, Teoria e Crítica pela UFRGS, e membro-pesquisador da Universidade de São Paulo. É editor há 20 anos e mora em Toronto, Canadá.

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