Garoto é atacado por tubarão mas passa bem

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Valf é ilustrador e escritor

Lembro perfeitamente da roupa que vestia. Calça boca de sino com coloridos motivos florais estilizados. A jaqueta, branca, era de um material desfiado que parecia querer emular o pelo desgrenhado de algum animal lanoso. Lembro das pessoas subindo a longa avenida que terminava exatamente na porta do único cinema da cidade. Ingressos comprados, entramos na sala escura e com a ajuda do lanterninha, esse hoje anacrônico personagem, encontramos os melhores lugares bem em frente a aquela gigantesca tela branca. E então se fez a luz. Extasiado, acompanhei o baile da poeira em suspensão que brilhava no meio do feixe de luz que rasgava o cinema e projetava na tela o que seriam as minhas primeiras lembranças da sétima arte. E lá ia eu, no alto dos meus 6 anos, assistir algo que marcaria minha vida de diversas e profundas maneiras. Estreava no pequeno cinema da minha pequena cidade o filme Tubarão.

Sempre uma semana antes da estreia, o cartaz do filme era afixado na porta de um restaurante com um absurdo pé direito triplo, ao lado da matriz, bem no centro da cidade. Em uma caixa de madeira escura envernizada, protegida por um vidro não tão translúcido assim, os cartazes estavam sempre ali, como parte da paisagem. E eles realmente me fascinavam. Eu passava na porta do restaurante várias vezes por dia para poder ver e rever os detalhes daquelas verdadeiras obras de arte. Desenhos e pinturas que ainda criança já observava com reverente minúcia. Foi quando um dia, saindo da escola, passei para ver as novidades na minha galeria de artes de uma obra só. E lá estava ele. A palheta de cores, resumida em quase sua totalidade em variações de azul, era quebrada apenas pelo título Tubarão bem no topo, escrito em berrante vermelho e também pelas cores quentes da mulher nua que deslizava incauta na superfície. Sua nudez era magistralmente escondida por rápidas pinceladas de tinta branca. Na parte de baixo da arte, o descomunal e desproporcional tubarão irrompia o limite físico da borda inferior do cartaz para entrar avassalador na composição da cena. A boca escancarada. A morte com mil dentes. E novamente a tinta branca seria usada. Agora como sutil silhueta borrada ao redor do corpo do monstro e também dando volume às bolhas de ar que escapavam dos flancos de sua boca. Essa combinação imprimia um incrível efeito e um censo de dinamismo à cena. Boom! Estava ali, a perfeita representação do exato momento que antecede a tragédia. O inexorável. O fim da linha.

No escuro do cinema, nenhum filtro, nem teorias cinematográficas, nem resenhas. Era apenas eu e minha primeira vez perante a tela grande – a experiência mais completa de uma imersão pura. Não tinha a menor noção de como Spielberg usava e abusava da ausência do tubarão em cena para criar tensão, do que eram câmeras subjetivas e nem de como a trilha sonora de duas notas apenas podia ser um poderoso gatilho para uma corrente de adrenalina. Era apenas um apavorado espectador. E foi assim que, no escuro do cinema, por mais de duas horas fui fisgado e vi como um simples barril amarelo pode ser tão assustador quanto um borbulhão de sangue. Os créditos ainda subiam na tela quando começamos a deixar o cinema. Saímos de lá com as imagens ainda vivas na memória. E profundamente marcados. Eu e uma geração inteira.

Não é exagero dizer que muita gente tomou verdadeiro pavor de água depois do filme. Parei de ir às aulas de natação porque cada sombra projetada no fundo da piscina era um convite ao pavor. Existe uma enorme lagoa na minha antiga cidade, onde a prefeitura havia construído uma praia artificial, com areia e tudo. Na época virou uma espécie de balneário das cidades vizinhas e ficava lotada nos finais de semana. Eu morava em frente e era só atravessar a rua para ir nadar. Gostava e passava muito tempo lá. Mas parei por medo. Nada me demovia da ideia perfeitamente plausível na minha cabeça de que um terrível tubarão habitaria aquela lagoa. E passei a ficar parado na calçada acompanhando a movimentação dos banhistas e dos pescadores que, perigosamente, insistiam em ficar sentados na beira do lago fazendo círculos na água com os pés, enquanto jogavam seus anzóis. Eu era uma espécie de Roy Scheider em miniatura, esperando só um ataque para poder gritar:  S  A  I  A  M   D  A   Á  G  U  A  !  T  U  B  A  R  à O  !  Com toda carga dramática possível, é claro. Mas o máximo que acontecia era alguém exceder na bebida e ser retirado da água pelos colegas. Passei muito tempo nessa situação. O processo de convencimento sobre o absurdo de um tubarão ali naquele lugar demorou e teve que passar então pelo apelo à razão. Como um tubarão chegaria ali, me perguntavam. Como ninguém nunca tinha visto nem uma mera barbatana? Como um animal de água salgada poderia sobreviver na água doce? Contra fatos não existem argumentos e tive então que inventar as mais improváveis e estapafúrdias respostas para confrontar quem queria me ajudar. E dessa forma, o tempo foi passando. A lagoa, a poucos metros da porta da minha casa, eu olhava pela janela, abatido. Ficava um bom tempo assim. Os constantes esforços continuaram e pouco a pouco fui me acostumando com as argumentações da família e dos amigos, num processo custoso e lento. Até que um dia, do nada, tomei coragem. Abri a porta, atravessei a rua e, intrépido, entrei na lagoa que tanto gostava. E fui nadar. Não totalmente convencido, mas feliz.

Foi um longo período. Demorou um tempo, mas eu havia voltado para minha vida normal, entre aulas de natação e brincadeiras na lagoa. Tudo passou a parecer absurdo e as lembranças se transformaram em memórias engraçadas. E eu continuava visitando meu relicário de madeira envernizada religiosamente. Foi quando um dia, já de longe pude ir vendo, enquanto atravessava a rua. Parado, atônito, sem palavras eu encarei o cartaz exposto. Eu que já havia aceitado a impossibilidade de um tubarão na piscina, não estava de forma alguma preparado para aquilo. Ele tinha sua estética e seu conceito claramente apossados do filme Tubarão, porém com uma pequena diferença que mudaria o rumo da história. E meus problemas apenas começavam. Para meu tormento, estreava no pequeno cinema da minha pequena cidade o filme Piranha.

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4 comentários em Garoto é atacado por tubarão mas passa bem

  1. Valfredo!!!!!!
    Que lindeza! Parabéns. Espero ler e ver outros textos!!! Beijo

  2. Amei! Me identifiquei! Bacana demais!!!

  3. Mandou bem demais!!!

  4. Muito bom Valf. Realmente é impossível ter tubarões aqui na lagoa. Piranhas TB foram extintas provavelmente pelo bloqueio do córrego bebedouro que impede a comunicação da Lagoa Santa com o Rio das Velhas. Essas prepadoras foram substituídas pelo exótico tucunaré (da bacia amazônica). Mas seus medos de crianças fazem o maior sentido… A cerca de cinco anos tem sido avistados jacarés na lagoa. Compre a pipoca e o guaraná para a sessão de “Aligator”tupiniquim.
    Um abração meu amigo!

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