Da lembrança dos pássaros
Dalmir Lott é músico em Belo Horizonte
Eu e Cristine descobrimos, ao sair de Belo Horizonte em direção à BR-381, em viagem para Guanhães, um restaurante que, por uns tempos, considerei servir as melhores sobremesas por mim provadas. Tudo à moda da roça e nossos costumes. A quantidade era enorme, impossível de provar tudo. Um colorido formidável! A comida ótima, muito bem confeccionada, mineira, servida em fogão à lenha em muitas panelas de pedra. O garçom simpático, trajado conforme manda a boa escola de hotelaria, nos passando confiança profissional. As instalações sanitárias bem higienizadas. E havia algo em especial que me comprazia durante a refeição. O pardais e canarinhos que voavam por dentro do restaurante, pousando aqui e acolá, muito próximos de nós, numa intimidade só vista, a espera de um grãozinho de comida que sobrasse dos pratos. Um e outro bem-te-vi também me recordo. Um espetáculo ao vivo, de voos rasantes e delicados pousos nas cadeiras vagas, que eles transformavam em poleiros os encostos. De propósito eu jogava um arrozinho ao chão só para vê-los bicar. E cá vinham eles, a meio metro de mim. A música caipira de raiz tocada nas caixas de som enchia o ambiente decorado à moda das fazendas antigas.
Ao fim da refeição, já acertada a conta, dirigi-me às proximidades da cozinha. Lá dentro, vi duas senhoras de uns 60 anos, negras, lindas, paramentadas de cima a baixo, óculos no nariz, com aquele ar de quem traz na expressão a oralidade de séculos da cultura africana. Fiz sinal de presença e elogiei a comida e sobremesa. Devolveram-me dois grandes sorrisos e votos de boa viagem. E lá fomos nós pela rodovia perigosa, levando esta boa recordação.
Algum tempo passou. E noutra viagem, neste mesmo trajeto, propomo-nos a almoçar no tal estabelecimento, para “matar o bicho”, matar a saudade do bom atendimento e qualidade da comida. E claro, ver os passarinhos. Aquelas formidáveis criaturinhas que, graciosamente, nos ofereciam um espetáculo de pureza e simplicidade.
Eis que no momento em que entramos com o carro no estacionamento privado do restaurante, notei certo desleixo. Vi peças de construção civil jogadas de qualquer jeito, um monte de areia a espera de alguém peneirar ou mesmo dali retirar.
Ao entrarmos no restaurante, ouvi algo estranho. Tocava uma música eletrônica! Oito compassos que se repetiam num looping interminável, que de vez em quando era quebrado por uma voz feminina gritando “I got you”. Senti falta da toada caipira. Olhei ao fundo, e lá estava o fogão à lenha e as panelas. Menos mau.
Sentamo-nos. Passei os olhos ao redor e não reconheci aqueles funcionários. Eram outros. E sem as fardas de trabalho. Serviam à civil, um deles com uma camiseta do Chicago Bulls, nos pés tênis de montanhismo. Bem, bola pra frente. Estávamos ali para almoçar.
Pedi uma cerveja sem álcool e, enquanto bebia, constatei que os passarinhos estavam presentes, na mesma brincadeira de sempre. Sorri. Ali estavam eles!, fiéis como da outra vez.
Ergui-me da cadeira e resolvi dar uma olhada nas panelas. Antes fui lavar as mãos no lavatório e constatei que os banheiros precisavam ser limpos. Voltei para a sala. Dei uma volta ao redor do fogão para conferir o que havia ao lume. Quando o contornei, vi a cozinha. Aquelas senhoras bonitas de antes não estavam mais lá. Eram outras pessoas.
Servi meu prato daquelas coisinhas mineiras que gosto, aquelas que os médicos – estes nazistas do paladar – proíbem. Tudo light, eu juro, rsrsrsrs. Quando sentei-me à mesa e provei do que estava no prato, o sentido denunciou que não era aquela refeição de antes. Muito abaixo da média.
Bem, depois que lutei com faca e garfo, como um El Cid na arena romana, recordei-me das inúmeras sobremesas. Aquelas tão por mim elogiadas e torci para que ainda tivessem mantido a excelência da qualidade. Isso salvaria a decepção até aqui. Quando cheguei ao bufê referido… Meu Deus! Duas qualidades delas apenas à disposição, sendo uma queijo com goiabada, o que não terá exigido qualquer mágica culinária que eu esperava. A outra era algo frio, parecido com as hóstias das igrejas católicas, só que açucaradas.
Na hora de pagar, Cristine, que é craque em matemática, ouviu o gerente calculando nosso consumo numa máquina, a dizer o total da conta. Antes de passarmos o cartão de débito, ela solicita, já desconfiada de algo:
– Me faz esta conta novamente por itens, com os preços de cada. Me fala em voz alta, por favor.
– Ah, você tomou suco de uva! Eu cobrei de laranja. É por isso que está dando mais. Desculpe – respondendo num tom maquinal, automático e monótono.
Ué?! Quem falou em suco? Quem disse que a conta estava a mais? Ficou a impressão de que ele tinha a justificativa escondida na manga. E de suco em suco, o gerente enche o papo.
Pois bem. Fim do último ato. Mudaram a gerência daquele restaurante e o drama assim finaliza: o estacionamento com restos de obra, a música irritante, a comida sofrível, as sobremesas pífias, o banheiro sujo, o gerente desonesto.
Mas uma coisa se salvara. Os passarinhos! Estes, até aqui, não traíram as boas lembranças de antes. E dei graças a eles, lindas criaturinhas.
Com a conta paga, dirigimo-nos à porta de saída, na certeza de que ali nunca mais retornaríamos, e levaríamos somente a lembrança dos pássaros.
Ao meio do corredor, ainda dentro da casa, ouço Cristine me dizer:
– Nossa! Sua camisa branca!
– O que foi?
– Um passarinho fez cocô nela! Bem nas costas.
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