Como perder um Império Colonial em 26 minutos
André Sena é colunista do Jornal de Toronto
Da série “Flashes da História Canadense”
O grande filósofo inglês Frances Bacon entendia a guerra como um “produto direto do medo diante de uma ameaça iminente”, tal como declarou em 1625 em seus “Ensaios sobre o Império”. Alguns séculos mais tarde, o general alemão Karl von Clausewitz afirmaria que a “guerra é a continuação da política por outros meios, sendo ao mesmo tempo um ato e um instrumento da política”. As duas reflexões acima são preciosas para ilustrar um momento crucial da história canadense, onde Quebec City foi, por 26 minutos, o epicentro das decisões de duas potências mundiais, que trariam consequências para o mundo inteiro, e impactando de forma indelével as relações de poder não apenas no Atlântico, mas em escala global.
Este momento, que não chegou a durar meia hora, entrou para a história do Canadá com dois nomes distintos, cuja diferença marca em grande medida o olhar e a perspectiva sobre o ocorrido: no Canadá francês ele ainda é conhecido nos dias de hoje, nas universidades, escolas e livros didáticos, como a “Batalha do Quebec”; já por aqui, em Ontário e no Canadá anglófono como um todo, conhecemos este episódio histórico, ocorrido em 1759, como “A Batalha das Planícies de Abraão”.
Quando Bacon nos fala da profundidade da relação entre a guerra, ameaça e medo, podemos compreender o grande envolvimento de atores não-europeus no que ocorreu naqueles vinte e poucos minutos. Apenas na defesa de Quebec City foram empregados 1.800 soldados indígenas, ou melhor, integrantes do que hoje chamamos de povos originais. Isso sem contar aqueles que, ao lado dos ingleses, atacaram a Nova França, em uma região que pertencera a um tal de Abraham Martin, um século antes, e que já era conhecida naquela época como as “planícies de Abraão”. Estes soldados faziam parte de um conjunto de nações que conhecemos na história canadense como os Nove Fogos (ou sete, dependendo do momento histórico). Mik’maq, Wolastoqyik (Maliseet), Abenaki, Potawatomi, Odawa e Wendat e outros, compreendiam que os conflitos entre ingleses e franceses eram uma ameaça permanente a sua sobrevivência enquanto comunidades autóctones. A guerra diante desse quadro era inevitável, assim como o posicionamento, tanto em um quanto noutro campo. A intensa participação indígena na Guerra dos Sete Anos (1756-1763), dentro da qual essa batalha relâmpago se enquadra, pode ser explicada a partir disso.
Entretanto, a definição de Clausewitz também nos ajuda a entender a rendição do Quebec em 1759 e a transposição definitiva de todo o Canadá francês para as mãos britânicas, com a assinatura do Tratado de Paris em 1763. Aqui, vemos claramente a percepção do general alemão sobre a intimidade entre a guerra e a política, tal como descrevemos no primeiro parágrafo. Dois impérios coloniais disputam sua hegemonia ao mesmo tempo, em duas regiões essenciais para a política global naqueles tempos (e ainda nos dias de hoje!): a Europa e as Américas. Os britânicos compreenderam rapidamente que a presença francesa no Canadá era um obstáculo à sua expansão geopolítica e comercial no Atlântico Norte. Entenderam também que o centro de poder decisório francês nas Américas não eram as Antilhas, mas a única diocese católica ao norte do México: o Quebec. Garantir as pretensões hegemônicas internacionais da Inglaterra implicava, portanto, na tomada de Quebec City e Montreal.
A estratégia implicada para se chegar ao ápice desse processo, a Batalha das Planícies de Abraão de 1759, começou com a queda de Louisbourg em Cape Breton, um ano antes, e com o sufocamento gradual pelas forças navais inglesas dos entroncamentos em torno do Rio São Lourenço, como Montmorency Falls e Beauport, deixando os franceses sem a possibilidade de receber reforços da França, mesmo com um número superior de soldados em terra. Soldados numerosos, mas com treinamento militar inferior ao contingente militar britânico – este formado essencialmente por soldados profissionais que contavam com o apoio de povos originais, que se aliaram a Inglaterra, colonos americanos ao sul da fronteira, bem como da poderosa esquadra britânica. A tática do general James Wolfe consistia em provocar o primeiro tiro dos franceses, liderados pelo Marquês Louis-Joseph de Montcalm e responder à agressão.
E foi precisamente isto que ocorreu quando, amparados pela esquadra britânica, os ingleses conseguiram instalar suas tropas em terra e ocupar as Planícies de Abraão naquele ano. Muitos historiadores discutem ainda hoje a decisão de Montcalm de responder com fogo a esta invasão britânica. Alguns estudiosos de história militar defendem a ideia de que ele deveria ter esperado reforços da Europa, que só chegariam de fato um ano e meio depois. Foram 26 minutos decisivos, em que os generais de ambos os lados, Montcalm e Wolfe, morreram feridos, mas onde os ingleses prevaleceram e Quebec City se rendeu, o que mais tarde também ocorreria com Montreal, apesar de posteriormente os franceses ainda conseguirem retaliar, por curto tempo, em 1760.
Tanto Bacon como Clausewitz acertaram em suas percepções sobre a guerra e o conflito, e a Batalha das Planícies de Abraão de 1759 são um exemplo concreto disso. O Tratado de Paris de 1763 reconhecerá a soberania inglesa sobre todo o Canadá, o que impactou tanto a Independência dos Estados Unidos, em 1776, quanto a formação da Confederação canadense no futuro, em 1867. Como política de compensação, a Martinica e o Guadalupe eram “cedidos” para a França, e ainda hoje seguem sendo territórios ultramarinos franceses no Caribe. Apenas a Louisiana ficaria sob domínio francês, e mesmo assim por pouco tempo, sendo vendida aos Estados Unidos por Napoleão Bonaparte alguns anos a frente.
Por 26 minutos, a cidade de Quebec foi o palco e o centro de movimentos militares e decisões que redesenhariam a curto, médio e longo prazo uma boa parte do que somos hoje. Essa microfísica do poder consiste em um elemento de análise muito rico para compreendermos o lugar que ocupa no mundo a história deste continental país chamado Canadá.
Amei o artigo! Me fez remontar uma pequena viagem que fiz à cidade de Quebec uns 2 anos atrás!
Obrigado por publicar!
Valeu meu querido. Feliz que vc tenha apreciado o texto.