Comunidade brasileira não se apoia

É importante que brasileiros apoiem brasileiros

José Francisco Schuster é colunista do Jornal de Toronto

Tristemente, a mentalidade de boa parte da sociedade brasileira estagnou na época medieval, no período escravagista. Para muitos, basta escapar de raspão da pobreza para considerarem que têm sangue azul e viverem de nariz empinado. Rejeitam a grande maioria, acham que só eles têm valor e que os demais são “o resto”. A briga chega até ao nível familiar, se afastando de todos os que consideram diferentes e, portanto, menores. Afastam-se da própria tia, que é “macumbeira”, do tio que é vegano, do primo que é gay, da prima que é funkeira. “Que horror!’, dizem torcendo o nariz.

A frase preferida desses é a de Dona Florinda, do seriado Chaves: “Vamos, tesouro. Não se misture com essa gentalha” – uma deixa para Quico debochar de seus próprios amigos: “Gentalha, gentalha, gentalha”. Gostariam de viver em uma ilha privada, sem mais ninguém – a não ser os empregados, claro, porque não se acham dignos de ter que lavar suas próprias cuecas. Contudo, empregados que, por não serem da mesma classe dos patrões, não merecem nem ser chamados por este nome. Como dizia Clodovil ao entrevistar socialites, “Como é sua relação com seus criados?”.

A qualquer lugar que vão, querem tratamento diferenciado, porque não são “essa gentinha”. Querem ser especiais, exigindo passar na frente, e só aceitam falar com o dono ou o gerente do estabelecimento, não com “empregadinhos”. Se vão a uma festa ou espetáculo, tem que ser na área VIP ou camarote, “porque Deus me livre me misturar com o povão”.

Atitudes como esta fazem com que, surrealmente, em cidades como Porto Alegre, por exemplo, a população cresça, mas o uso de transporte coletivo caia, pois há todo um esforço para trocar o compartilhamento do ônibus pela exclusividade do Uber. Em uma história do ovo e da galinha, o menor número de passageiros faz o preço da passagem do transporte coletivo subir, afastando ainda mais gente dele – claro, os que podem pagar o Uber, que são justamente quem vive mais próximo do centro e, por isso, o transporte por aplicativo se torna economicamente viável. Os que moram na periferia, além da renda menor, acabam arcando com a passagem mais alta e com o serviço escasseado.

O pior é que esses maus hábitos acabam muitas vezes transferidos junto com a imigração. Em vez de se aprender com o novo país e de se abrir para costumes mais civilizados, se transfere toda a discriminação. Com isso, a possibilidade de evolução da comunidade se torna muito mais limitada, ao ela mesmo dar-se um tiro no pé. Como Carmem Miranda, “voltou americanizada”, desprezando seus próprios compatriotas. Se acham os reis da cocada, e só querem contato com os canadenses, com alguns chegando ao ridículo de não quererem mais falar português.

Assim, ao contrário de outras comunidades imigrantes do Canadá, como portugueses, italianos, gregos, chineses e indianos, não há um apoio mútuo, que é um acolher e prestigiar seus negócios. Não se dão conta de que os primeiros clientes têm que ser os próprios compatriotas, para que o negócio tome fôlego e cresça. É tão difícil de entender o óbvio, que portugueses vão a padarias portuguesas, gregos vão a restaurantes gregos, italianos vão a barbearias italianas, chineses vão a supermercados chineses e assim por diante, sendo isto vital para as empresas e empresários?

Já os brasileiros tendem muitas vezes a simplesmente ignorarem a comunidade, ou criam o gueto do gueto do gueto, frequentando somente onde pensam que vão encontrar “gente como eu”: vão ao show do artista brasileiro X, mas ignoram o Y, apesar de tocar o mesmo ritmo musical e ter igual qualidade. Aliás, é fácil para uma cartomante prever os brasileiros que irão a determinado evento, pois é sempre a mesma panelinha.

No exemplo acima, é claro que para o artista Y será muito mais difícil crescer – e até sobreviver – só com seu restrito público, já que o público do artista X o ignora. O mesmo se aplica a todos os demais empreendedores da comunidade. É frustrante saber que o Brasil é uma das maiores fontes de imigração para o Canadá, que existem cada vez mais brasileiros nas ruas daqui, mas que simplesmente não se conta com eles para crescer seu negócio. Já ouvi muitos relatos de pessoas desanimadas, lamentando não poder contar com seus compatriotas. Poderíamos crescer todos juntos aqui no Canadá, mas parece haver um espírito até sádico de querer ver o outro “passar trabalho como eu passei” e até mesmo o levar a desistir. Em uma mentalidade egoísta, mesquinha e discriminatória, “ninguém pode sofrer menos do que eu sofri, afinal, eu sou melhor”. E assim vai toda a comunidade brasileira para o buraco.

Sobre José Francisco Schuster (70 artigos)
Com quase 40 anos de experiência como jornalista, Schuster atuou em grandes jornais, revistas, emissoras de rádio e TV no Brasil. Ao longo dos últimos 10 anos, tem produzido programas de rádio para a comunidade brasileira no Canadá, como o "Fala, Brasil" e o "Noites da CHIN - Brasil". Schuster agora comanda o programa "Fala Toronto", nos estúdios do Jornal de Toronto.

3 comentários em Comunidade brasileira não se apoia

  1. Prezado Schuster, o artigo nos convida a pensar.

  2. Olá querido jornalista, excelente artigo. Parabéns! Uma boa explicação para a situação descrita na matéria pode estar representada no resultado da eleição de 2018 em que mais de 70% dos votos dessa comunidade foi dado para o famigerado Bolsonaro. Claro que muita gente se absteve de ir votar, o que da no mesmo, pois dessa forma legitimaram o voto daqueles que lá compareceram. Seria interessante uma matéria abordando o perfil dos brasileiros em Toronto. Quem em sã consciência quererá se ombrear com fascistas e neo-nazistas? Fraterno abraço desde Salvador, Bahia.

  3. Alessandra Granato // 3 de outubro de 2022 às 11:51 am // Responder

    A análise é interessante, obrigada. Deixo aqui minha frustração com o trecho “para costumes mais civilizados”. Eu entendo a frase dentro do contexto dos seus argumentos no texto mas sinto que precisamos refletir bastante toda vez que hipervalorizamos os norte-americanos privilegiados e os chamamos de civilizados, reproduzindo um contraponto a todas as outras culturas e povos que “precisam ser salvos, colonizados e civilizados” por eles. Talvez seja essa mesma base que sustenta a ideia de “o que vem do grande Brasil não presta”, eu quero mesmo é ser VIP.

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