“Old Tomorrow”: idealizado, problematizado, desmistificado ou cancelado?
André Sena é colunista do Jornal de Toronto
Da série “Flashes da História Canadense”
O que me inspira a escrever o artigo deste mês para a coluna “Flashes da História Canadense” foi uma visita que fiz ao Condado do Príncipe Eduardo, especialmente a Baía de Quinte, recentemente. Em busca de algumas referências históricas para um livro que estou escrevendo, dirigi-me com meu companheiro até Lake on the Mountain, um dos berços da Revolução Industrial no Canadá. Para a minha surpresa, tropecei (literalmente!) na informação de que a região havia sido ocupada e explorada economicamente pela família do Fundador da Confederação de 1867, Sir John A. Mcdonald, muito conhecido de todos nós por aqui como o criador do Canadá moderno.
John Mcdonald teve alguns apelidos ao longo de sua trajetória política, e talvez o mais intrigante deles seja o intraduzível “Old Tomorrow”. Esta estranha alcunha refere-se à capacidade meticulosa de Mcdonald em detectar o timing preciso de certas decisões políticas com a exatidão de um relógio. O calculismo de Old Tomorrow era ao mesmo tempo notório, mas também uma necessidade dos tempos. O mundo transformava-se freneticamente quando Mcdonald consolidou, no dia 1 de Julho de 1867, o British North America Act, que promovia a unificação de três territórios separados, o Alto/Baixo Canadá, o Novo Brunswick e a Nova Escócia em um único país, então conhecido (e alguns ainda se referem a ele desta forma) como o Domínio do Canadá.
Um dos biógrafos recentes deste incontornável personagem histórico canadense é o escritor e colunista político do jornal Toronto Star, Richard Gwyn. Seu livro, Nation Maker: Sir John A. Mcdonald. His life, Our times, publicado em 2012, recebeu inúmeros prêmios, tendo concorrido inclusive ao Governor General’s Literary Award for Non-Fiction. Um dos aspectos da obra que mais chama atenção é a riqueza com a qual Gwyn descreve o turbulento cenário internacional, onde Mcdonald teve de atuar como um ardiloso falcão político. Novos impérios emergindo, velhos impérios resistindo. Velhas modalidades econômicas sendo substituídas por novas possibilidades de expansão capitalista, cuja principal expressão era o avanço industrial associado a tentativas cruéis de neocolonização. Foi nesse período terrível e ao mesmo tempo fascinante, chamado por muitos historiadores de Belle Époque, que Old Tomorrow foi o primeiro Primeiro Ministro do Canadá, especificamente entre 1867 e 1873 e depois novamente, entre 1878 e 1891.

Enquanto lia algumas placas históricas em Lake on the Mountain, reparei que aquela referente a John Mcdonald era acompanhada por uma foto sua, visivelmente danificada com ranhuras feitas com o auxílio de algum objeto cortante, possivelmente com a intenção de mais um protesto político, algo que se soma a uma onda de crítica histórica que vem crescendo no país ultimamente.
As aquecidas discussões sobre a quem devemos homenagear nas narrativas históricas de nossos países têm levado a manifestações públicas, frequentemente consideradas radicais por uns, ou simplesmente justas por outros. O tema já havia sido abordado em outro artigo desta coluna, chamado “Efeito Minneapolis“, onde discuti o destino de ruas famosas de Toronto, como a Dundas e a Jarvis St., muito antes da ação sobre a estátua de Egerton Ryerson por aqui e do protesto sobre a estátua da Rainha Vitória, em Winnipeg. Naquele momento, ainda não havíamos testemunhado o horror da descoberta dos túmulos clandestinos de 215 crianças indígenas na Colúmbia Britânica, nem o reaquecimento do debate público acerca do gravíssimo e injustificável flagelo das escolas residenciais no Canadá.
John A. Macdonald passaria a ser uma das figuras históricas nacionais a ser reexaminada à luz do debate nacional que surgiu com o escândalo dos túmulos infantis. Especialmente a partir da década de 1880, o fundador do Canadá moderno atuou de forma sistemática em um processo truculento de assujeitamento das populações nativas do Canadá, hoje reconhecidas como as primeiras nações que sempre compuseram o mosaico imemorial canadense.
Em uma “era comparativamente brutal em quase toda parte”, como sugere o colunista do The National Post, Tristin Hopper, ao criticar Mcdonald em um artigo chamado “Here is what Sir John Mcdonald did to Indigenous people”, nosso exame acerca dele encontra-se hoje diante de um inevitável paradoxo: manter o mito do Old Tomorrow e sua capacidade de fundar, com todos os seus problemas, um país hoje admirado e cobiçado por tantos de nós, ou rejeitá-lo, diante do insuportável peso do passado, buscando o caminho da desmistificação e possivelmente o do cancelamento, amparados talvez na escolha ativa de buscar novas referências para uma narrativa nacional canadense.
Retornei do Condado do Príncipe Eduardo para Toronto sem me inclinar a escolher um ou outro caminho. Não acredito em uma história relativa, nem tampouco noutra, dotada de verdades absolutas; mas definitivamente acredito em uma história plástica, viva, capaz de ser revisitada e repensada quando a necessidade do tempo se impõe. Talvez haja um velho amanhã. Talvez não.
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