Africville e a breve história da Liga de Jogadores Negros de Hockey

… vinte e dois anos antes do surgimento da atual NHL

Fonte: Canada Post.

André Sena é colunista do Jornal de Toronto

Da série “Flashes da História Canadense

Há males que perduram muito mais do que as iniciativas capazes de desencadear mudanças em nossas sociedades. Historiadores como Fernando Braudel, Pierre Nora, Peter Gay, Robin Collingwood, ou sociólogos e filósofos como Norbert Elias e Paul Ricoeur se dedicaram por anos à questão da longa duração e das relações entre história, tempo e memória. Com efeito, o racismo sistêmico é um dos mais terríveis fenômenos que desafiam o tempo, inscrevendo-se nos processos de longa duração e formação de memória coletiva, provocando chagas ao redor do planeta dificílimas de serem curadas.

A ideia do esporte como uma ferramenta na construção de utopias realizáveis – para fazer uso de um termo criado por Aldous Huxley em prefácio à sua clássica obra Admirável Mundo Novo – não é uma proposta tão nova de intervenção em nossas relações sociais e nas instituições que delas resultam. Em 1895, 30 anos depois dos últimos homens negros escravizados chegarem a Halifax, atravessando a longa e perigosíssima Railroad Highway, criava-se no Canadá Atlântico a Coloured Hockey League (CHL). Vinte e dois anos antes do surgimento da atual NHL.

O termo coloured pode chocar nossos olhos contemporâneos, mas palavras também têm história. E neste caso, em fins do século XIX, a utilização de ‘coloured’ pode não ser algo glorioso, mas é perfeitamente explicável. Hoje seria um escândalo, mas em 1895, em plena Belle Époque canadense, não era. E por esta mesma razão o termo figura na formação de uma liga esportiva que fez história, na medida em que se amparava no ideal de que a igualdade racial chegaria ao Canadá, e que esse esporte tão novo quanto recente – o primeiro jogo efetivamente competitivo em uma arena interior teria sido em 1883, no Quebec – poderia desempenhar um papel fundamental nessa direção.

Além desses, há outros elementos que incrementaram o processo de criação da CHL, só recentemente de fato reconhecida nacionalmente como patrimônio cultural e esportivo canadense: elementos de natureza geográfica, demográfica e identitária.

No que se refere à geografia, é impossível falarmos sobre a história negra canadense sem mencionar um nome: Africville. Não há outro endereço no país que represente com mais plenitude um lugar de memória para os negros canadenses. Localizada nos arredores de Halifax (justamente onde a CHL surgirá) Africville “começava onde o asfalto terminava”, como ainda é comum ouvirmos descendentes de moradores se referirem à região. Um pequeno assentamento urbano, mas cheio de vitalidade, onde boa parte da população negra da Nova Escócia se organizou, criando habitações, trabalho, lazer e instituições.

A história de Africville se confunde – e ainda bem que é assim! – com a própria história do Canadá, datando das primeiras rotas migratórias de fuga para uma “possível liberdade”, que ao sul da fronteira era subtraída de homens e mulheres escravizados. Entre 1760 e 1850, Halifax era o destino final de quem dizia não à escravidão e se recusava a viver como uma propriedade. Africville hoje não existe mais: foi vitimada pela especulação econômica diante da expansão do ramo ferroviário e da cadeia produtiva que ligava as Maritimes ao resto de um país continental, que se industrializava audaciosamente. Entretanto, ainda hoje é um lugar de visita e peregrinação, especialmente para negros canadenses, que jamais perderam seus laços afetivos e memoriais com o que Africville representou e ainda representa.

Coloured Hockey League. Foto: Stryker_Indigo New York.

A CHL chegou a ter 12 times reunidos na Liga (um número espantoso para a época… e me arrisco a dizer ainda surpreendente para padrões atuais), competindo não apenas entre si, mas contra todo tipo de preconceito e obstáculos. Times históricos como Africville Seasides, Truro Victorias, Charlottetown West End Rangers, Amherst Royals, Hammond Plains Moss Backs, e o mais famoso de todos, os Eurekas, lotaram arenas por todo o Canadá Atlântico, muitas vezes com uma assustadora audiência para a época: chegaram a reunir entre 1200 e 2000 expectadores, gerando renda e empregos diretos e indiretos em seus campeonatos. Isso tudo com uma autorização maliciosamente limitada para o uso das pistas de gelo. A Liga só podia jogar nas arenas depois que os times brancos tivessem terminado suas temporadas de competição, o que comprometia sobremaneira a qualidade topográfica do gelo, tendo apenas 8 semanas para organizar toda uma copa de Hockey entre os meses de janeiro e março.

A partir da primeira década do século XX, a Coloured League of Hockey começou a sentir o efeito de tantos golpes causados pelo racismo estrutural e pela falta de apoio e promoção, algo vivenciado desde o primeiro dia de sua criação. A extensão das estradas de ferro para os extremos do Atlântico criou um processo de especulação que desapropriou a maioria dos habitantes de Africville, um dos berços da CHL; uma enorme resistência negra foi criada contra o avanço desenfreado e incontrolável do capital na região. A retaliação foi imediata e a CHL foi boicotada até se desfigurar completamente e desaparecer por duas vezes, uma provisória, a partir de 1911 (com uma tentativa de restauração da Liga em 1921) e outra definitiva, já nos primeiros anos da década de 1930.

As melhores arenas, todas controladas por associações geridas por pessoas brancas, não eram mais alugadas para a CHL; a transferência dos campeonatos para céu aberto, sobre lagos congelados, se mostrou tão ingênua quanto impraticável. Os times minguaram e os jogadores foram aos poucos abandonando o Hockey diante da falta de incentivo econômico, bem como da necessidade urgente de sobrevivência. A Liga não chegou até 1940, e sua história passou por um perigoso e cruel processo de silenciamento.

Graças aos esforços de dois pesquisadores canadenses, os irmãos George e Darryl Fosty, a história da Liga e de seus jogadores foi recuperada e trazida à luz. Publicada em 2004, a obra Black Ice: The Lost History of the Colored Hockey League of the Maritimes, 1895 to 1925 foi uma das bases historiográficas e documentais para a reabilitação histórica da Coloured League of Hockey,pelo reconhecimento por parte da província de Halifax de sua importância para a história desportiva canadense, bem como de seu papel enquanto movimento rumo a uma emancipação negra no Canadá.

Um dos resultados da atenção que o livro trouxe acerca da CHL foi o lançamento em 2020, pelo correio canadense, de um belíssimo selo comemorativo, ostentando a foto de vários jogadores da Liga. Quem não acredita que livros podem ser armas poderosas está redondamente enganado. Esses homens negros, filhos e netos de homens e mulheres escravizados, foram pioneiros em um processo de desconstrução do racismo estrutural, que ainda hoje requer de nós nervos de aço e resiliência. Sem eles, e sem a Liga, estaríamos definitivamente ainda mais longe do que estamos, hoje e agora. Portanto, obrigado.

Sobre André Sena (16 artigos)
André Sena é Doutor em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, professor de História e Relações Internacionais e atualmente desenvolve pesquisa sobre Relações Diplomáticas Brasil-Canadá e História do Brasil Contemporâneo.

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