Entre turbantes, preces e batalhas

A trajetória de resiliência e resistência cultural dos Sikh no Canadá

À esquerda, o líder do NDP Jagmeet Singh e, à direita, o Ministro da Defesa Harjit Singh Sajjan. Fotos: Wayne Polk e U.S. NATO.

André Sena é doutor em História Política pela UERJ

Da série “Flashes da História Canadense

Em abril de 2019, uma lei conhecida como Sikh Heritage Month Act foi aprovada no Canadá, afim de que a comunidade sikh fosse melhor conhecida do público canadense. Neste sentido, vale a pena nos debruçarmos sobre aspectos históricos e culturais dessa comunidade, que colore e ao mesmo tempo intriga o cotidiano das ruas, universidades e demais espaços de convivência em todo o Canadá, mais especialmente em Ontário e na Colúmbia Britânica.

Quando observamos pelas ruas de Toronto, Vancouver e outras cidades canadenses homens com turbantes das mais diversas cores, ou quando vemos pela televisão ou jornais figuras importantes da atual política canadense, tais como o parlamentar e líder do Novo Partido Democrático (NDP) Jagmeet Singh ou o Ministro da Defesa, Harjit Singh Sajjan, muitas vezes nos perguntamos acerca de suas origens culturais, embora saibamos serem todos, em grande medida, canadenses. Possivelmente escapa-nos a percepção da complexa e riquíssima civilização e história que se oculta, pela rapidez do cotidiano, naqueles turbantes: uma civilização originada na fundação de um sistema religioso profundo conhecido como Sikhismo, surgido entre os séculos XV e XVII no subcontinente indiano e consolidado com a demarcação das fronteiras de uma de suas mais famosas regiões: o Punjab.

A razão pelas quais hoje em dia vemos uma pronunciada geração de Sikh canadenses se dá justamente pela chegada do Império Britânico ao Punjab em 1846, transformando a região em um protetorado inglês, em pleno auge do que historiadores convencionaram chamar de imperialismo e neocolonialismo vitoriano. A partir da ocupação britânica desta região, a comunidade étnico-religiosa sikh vai – talvez como nenhuma outra minoria subcontinental – participar intensamente da vida política e, especialmente, militar do Reino Unido. Há uma interessante série, chamada 21 Sarfarosh: Saragarhi 1897, que dimensiona esse drama histórico. Essa inserção sikh na rede geopolítica vitoriana é uma das principais razões pelas quais o fluxo migratório desta comunidade de homens e mulheres será intensificado, assim como sua circulação pelos vastos domínios do maior império do século XIX, o que inclui o Canadá.

O ator Mohit Raina como Havildar Ishar Singh na série “21 Sarfarosh: Saragarhi 1897”.

As contribuições da civilização Sikh para o mosaico canadense, especialmente no aspecto cotidiano, são imensas, muito visíveis e consistem em um verdadeiro tesouro para historiadores que apreciam o gênero historiográfico da história social da cultura. A questão da obrigatoriedade do uso do turbante ocupa um lugar central nesse processo de construção de uma diversidade cultural canadense, que tem seus desafios ainda nos dias de hoje, mas que faz deste país um imenso caldeirão multicultural deveras singular.

O turbante, melhor conhecido entre os Sikh como Dastar, pode ser traduzido literalmente das línguas persa e punjabi como a mão de Deus [dast-e-yar], e consiste em um símbolo que evoca virtudes comunitárias e guerreiras, como a equidade e a coragem, além de elementos espirituais como a devoção e a observância de preceitos religiosos. O Sikhismo é na verdade considerada a 5ª maior religião do mundo, cuidadosamente elaborada por uma sequência de 10 mestres espirituais, conhecidos como os “10 Gurus da tradição Sikh”, que nasceram e organizaram esse sistema de fé e de cultura em torno de textos teológicos sagrados complexíssimos, no curso de 200 anos até chegarmos ao formato que conhecemos hoje.

Cabe aqui uma breve observação: não é o objetivo direto deste texto discutir elementos religiosos ou devocionais do Sikhismo, envoltos em um profundo e respeitável emaranhado de tessituras teológicas, que podem combinar aspectos próprios da cultura espiritual punjabi com elementos hindus, e ainda com outros, de uma certa tradição mística muçulmana conhecida como sufismo. É a importância e a resistência de certos traços da trajetória cultural e identitária sikh que se aborda aqui, especialmente no que se refere ao uso de uma indumentária tão essencial como o turbante e seu potencial afirmativo da identidade sikh no Canadá.

O filme canadense Breakaway (Speedy Singh), lançado em 2011, aborda a questão do turbante entre os Sikh, e se tornou um sucesso de público dentro e fora do país. Como jovens sikh, que não desejam (e nem podem) abrir mão de seus Dastar, podem se integrar a cultura do hockey, esporte nacional canadense por excelência? Como usar turbantes e ao mesmo tempo capacetes de hockey? A exploração desse tema pelo filme nos coloca diante de questões importantes, como a formação sempre dinâmica de comunidades nacionais. A cena dos Sikh no estádio de hockey, cantando em uníssono Oh Canada é, nesse sentido, uma das mais poderosas mensagens da trama.

A chegada en masse dos Sikh ao Canadá deu-se especialmente já nas primeiras décadas do século XX. Apesar da discriminação que sofreram, especialmente na Colúmbia Britânica, onde ainda hoje mais da metade da população sikh canadense reside, líderes comunitários construíram primeiramente associações, que promoviam a integração entre as famílias migrantes; em seguida, ainda entre os anos de 1920 e 1930 surgirão os primeiros Gurdwaras (templos religiosos), que desempenharam um importante papel não apenas no conforto espiritual mas nas lutas pelo reconhecimento da identidade sikh e no combate aos desafios impostos por todo processo de imigração.

Já entre as décadas de 1950 e 1960 ocorreu uma ocupação demográfica expressiva da comunidade sikh no que conhecemos como o corredor Toronto-Windsor, em Ontário, e ainda em Montreal e outras cidades do Quebec. Essa presença necessariamente transformou não apenas o cenário populacional dessas duas províncias, mas contribuiu sobremaneira para desdobramentos de ordem cultural, com a fundação de novos Gurdwaras e centros comunitários. Nada disso ocorreu sem uma dose significativa de desafios que implicariam na acomodação de novos atores culturais em regiões onde a cultura e religião dos Sikh nunca havia antes penetrado. Além disso, os Sikh buscavam igualmente seu lugar de direito como canadenses, em uma sociedade que se transformava cada vez mais no mosaico culturalmente transversal que hoje encontramos por aqui.

Um caso curioso e bastante revelador desse processo foi a sua inserção de sikh canadenses em instituições do país como a Real Polícia Montada do Canada (RCMP). Como integrar membros da comunidade Sikh, desejosos de pertencer a Polícia Montada, cujo símbolo mais conhecido é aquele chapéu arredondado de cor cáqui? Esta questão ficou conhecida como “A Controvérsia do Turbante”, e teve na figura do canadense Baltej Singh Dhillon um de seus principais personagens. Apesar de outras campanhas para alterações e adaptações no uniforme da RCMP terem-se iniciado já na década de 1970, foi apenas em 1991 que Dhilhon tornou-se o primeiro Sikh a integrar a instituição, portando orgulhosa e oficialmente seu Dastar, que hoje é um dos acessórios oficiais da organização policial em todo o país.

A presença da comunidade Sikh na cena cultural geral canadense hoje é uma realidade que, apesar dos desafios de sempre, é incontornável e ao mesmo tempo um tesouro nacional que, desde 2006, vem sendo oficialmente reconhecido pelo governo federal como algo que precisa ser não apenas respeitado, mas celebrado por todos nós. A obra da premiadíssima e jovem escritora sikh canadense Gurjinder Basran, Everything Was Good-bye, é um testemunho literário dessa ponte entre o Oriente e o Ocidente, forjada por tantos povos e culturas, e onde os Sikh ocupam um lugar de especial destaque. Este romance, premiado por aqui e internacionalmente, posicionou Basran entre as 10 autoras canadenses que precisam ser lidas por qualquer um que se interesse pelo Canadá e sua literatura.

A comunidade Sikh é com efeito, portadora de uma história ainda em construção, que em terras canadenses assumiu uma dimensão muito peculiar: a de conferir a sua própria assinatura para a formação cultural e nacional de um país que precisa cada vez mais se compreender diverso e plural. Coisa para leões! E se você reparou que 99% dos nomes de homens Sikh que você conhece possui a palavra Singh (se tiver dúvidas reveja o texto acima) saiba que essa palavra significa exatamente isso: todo menino sikh é reconhecido, ao nascer, como um Singh, ou seja, como um Leão.

Sobre André Sena (16 artigos)
André Sena é Doutor em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, professor de História e Relações Internacionais e atualmente desenvolve pesquisa sobre Relações Diplomáticas Brasil-Canadá e História do Brasil Contemporâneo.

1 comentário em Entre turbantes, preces e batalhas

  1. Janaina Cardoso de Mello // 16 de abril de 2021 às 9:44 am // Responder

    Grande orgulho e felicidade ler mais um texto seu. Sucesso, meu amigo! Parabéns!

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