“Vocês são todas feministas!”
André Sena é doutor em História Política pela UERJ
Da série “Flashes da História Canadense”
As relações de gênero vem sendo um tema cada vez mais explorado nos estudos históricos, e já podemos sem nenhum receio afirmar que se trata de um gênero historiográfico per se. Jovens pesquisadoras brasileiras, como por exemplo a historiadora Ana Carolina Eiras, da Universidade de Goiás, vem trabalhando sem descanso no sentido de desbravar ao sul do continente americano pesquisas de toda sorte, a fim de compreender o impacto dessas relações nos processos históricos como um todo.
Aqui no Canadá não é diferente: importantes historiadoras canadenses, como Catherine Carstairs, da Universidade de Guelph aqui em Ontário, ou Nancy Janovicek, da Universidade de Calgary em Alberta, já vem há anos se dedicando ao tema, e juntas organizaram e publicaram recentemente um importante livro sobre a história do feminismo no Canadá, enfatizando elementos de análise como mercado de trabalho, operariado feminino e estudos de gênero. Pesquisas específicas sobre o trabalho feminino doméstico no Quebec dos anos 1960, por exemplo, fazem parte de um leque de investigações históricas e sociológicas conduzidas por Catherine Carron, outra historiadora canadense que merece aqui o nosso destaque.
O protagonismo das mulheres na história é tão antigo e impactante como a própria história. Tragicamente podemos afirmar a mesma coisa acerca do seu silenciamento – a quantidade de ações femininas decisivas para os processos históricos que jamais teremos conhecimento, porque simplesmente desapareceram dos arquivos do tempo ou dele foram propositalmente apagados é imensurável. Mesmo assim, aquilo que ficou registrado ou vem sendo recuperado por historiadoras, como as que citei acima, pode nos proporcionar uma nova realidade historiográfica, nos levando a enxergar tanto o passado como o nosso presente com outros olhos. Uma história a contrapelo, como dizia o filósofo Walter Benjamim. A heroína da Guerra de 1812, Laura Secord, vulto histórico canadense que vem se tornando mais visível de alguns anos para cá, é um exemplo categórico disso. Teríamos conseguido defender Ontário da invasão americana com a mesma intrepidez sem ela? Provavelmente não. O que sabemos dela? Quase nada.
Com efeito, esse protagonismo histórico, social e político das mulheres sempre foi percebido ao longo de séculos como uma ameaça e perigo às diversas hierarquias tradicionais de gênero, que ressaltavam e legitimavam sobremaneira o papel masculino na história. Nem a modernidade do século XX conseguiu debelar por inteiro esse preconceito e essa percepção sobre os papeis de gênero em nosso mundo.
Em 6 de dezembro de 1989, um jovem homem adulto canadense deixaria isso muito claro. Com apenas 25 anos de idade, Marc Lépine não se conformava com a possibilidade de mulheres terem acesso a profissões e carreiras vistas por ele como exclusivamente masculinas. Ele não estava só: sua visão distorcida de mundo ganhara corpo graças a uma história de séculos de domínio político e cultural masculino, especialmente (mas não apenas) no Ocidente. O final dos anos 1980 apontava para uma série de novas e positivas mudanças no campo das sociedades e das culturas no ambiente atlântico: a distensão da Guerra Fria, a consolidação das Descolonizações na África, a Revolução Contraceptiva e a Revolução Feminista. Acuado diante da possibilidade de mulheres publicamente assumirem como nunca seu papel coletivo na história, e alterar definitivamente as hierarquias de gênero, homens como Lépine decidiram reagir com um banho de sangue.
O assassino entrou portando uma arma de caça semiautomática nas dependências do Departamento de Engenharia Mecânica da École Polytechnique de Montreal; num gesto meticuloso, calculista e não menos simbólico, invadiu uma sala de aula, rendendo alunos e… separando-os por gênero. Homens trancados em uma sala, mulheres separadas com ele em outra. Gritando “vocês são todas feministas!”, Marc Lépine executou a sangue frio 14 mulheres, dentre elas as jovens futuras engenheiras Geneviève Bergeron, Helene Colgan, Sonia Pelletier e Barbara Daigneault.

O massacre de Montreal foi imortalizado em um filme emocionalmente dificílimo de assistir, mas obrigatório para todos nós. Polytechnique, dirigido pelo cineasta canadense Denis Villeneuve em homenagem aos 20 anos do massacre, em 2009, é cruelmente educativo e definitivamente um filme incontornável no seu realismo duro e preciosismo cênico.
Marc Lépine cometeu suicídio logo após o atentado, assinando com esse ato a covardia do seu empreendimento. Conseguiu assim escapar da punição da justiça, mas jamais de nosso repúdio perpétuo. As mulheres que conseguiram sobreviver ao massacre (fingindo-se de mortas no chão ensanguentado da sala de aula) fizeram de seu testemunho histórico uma alavanca para o debate acerca do controle de armas no Canadá, o que levou a fundação da Coalition for Gun Control, pouco tempo depois, graças a determinação de mulheres canadenses como Heidi Rathjen e Wendy Cukier. Seis anos após o Massacre de Montreal, em 1995, o Parlamento Canadense aprovava a Lei C-68, também conhecida como o Fire Arms Act, legislação inédita que inaugura a jurisprudência sobre o controle de armas no país.
O dia do Massacre de Montreal, 6 de dezembro, foi instituído pelo governo canadense como Dia Nacional da Lembrança e da Ação de Combate à Violência contra a Mulher. Até antes da pandemia, havia solenidades públicas por todo o país, a começar por Ottawa, mas especialmente no campus da École Polytechnique de Montreal. Esse ano, por motivos óbvios, a solenidade foi realizada em terras virtuais.
Massacres, genocídios e golpes de Estado não se comemoram. Se rememoram, ou seja, fazem parte do rito da memória coletiva e das memórias nacionais; para que nunca se repitam, para que novas sinistras versões atualizadas não se produzam em nossas sociedades, mas especialmente para que nos lembremos do quanto ainda precisamos caminhar para construirmos um mundo melhor para as gerações que nos sucederão. Esse pacto indissociável entre o passado e o futuro só é possível graças à coragem que temos de encarar nosso presente. A mesma coragem das jovens engenheiras que sobreviveram a Marc Lépine e hoje exercem livremente suas profissões, mas não sem desafios e preconceitos, que assim como elas também sobreviveram ao terrorista de Montreal. Para o nosso alívio, no que depender das mulheres, me parece que estes últimos estão com seus dias contados.
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