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Honestidade é o básico

José Francisco Schuster é colunista do Jornal de Toronto

No jogo da vida, confiar em seus parceiros é o primeiro quesito. Senão, definitivamente, não dá. Estar o tempo inteiro desconfiado de que estão trapaceando, armando pelas suas costas, traz um estresse enlouquecedor. É necessário ter a paz de espírito de que estão todos no mesmo time, jogando para o mesmo lado, em busca de uma vitória coletiva, não de ganhos pessoais.

Na infância, nada mais irritante do que aquele que abre os olhos ou começa a correr antes do sinal combinado. “Não dá pra jogar contigo”, é a emburrada reação de quem não encontrou lealdade. Nossos pais vão ensinando o valor de ser honesto, mesmo diante de nossas carências financeiras. O sono tranquilo por ter-se feito o que se deveria fazer não tem preço.

Na cultura brasileira, entretanto, embrenhou-se em muitos a ideia do supremo individualismo, de obter vantagens indiscriminadas, passando por cima de princípios éticos e morais. Ficou conhecida como “Lei de Gérson”, remetendo ao que o jogador argumentava em um comercial de cigarros de 1976: “Gosto de levar vantagem em tudo, certo?”. As raízes, entretanto, são muito mais profundas, vindo desde as Capitanias Hereditárias e a consequente criação do coronelismo, sistema que se baseia em troca de favores.

Tristemente, o Brasil se tornou o país onde alguém que fura fila ou devolve troco a menos se julga esperto. O pior é que não parecem ser raras exceções: nada menos do que 190 mil militares solicitaram – e receberam! – o auxílio emergencial de R$600 (pouco mais de US$100) criado para amparar os que ficaram sem renda com a pandemia de Covid-19, em um prejuízo de R$114 milhões aos cofres do governo.

O número depois foi reduzido pelo governo para 73 mil, o que não muda muita coisa. Não foi um, 100 ou mil que passaram a perna no governo, foram milhares e milhares. Uma horda que não se penaliza por um segundo pelo governo estar usando dinheiro que não estava no orçamento e que é para os necessitados – sendo que os militares têm alguns dos melhores salários do serviço público. Enquanto isso, muitos dos que realmente precisam ainda não receberam e ainda necessitam virar a noite em longas filas para regularizar cadastros.

A penalidade para estes militares será devolver o valor recebido indevidamente. Fala-se pouco em processos administrativos e penais que, seguramente, não darão em nada. Mas não eram logo os militares os paladinos da justiça? Faça um Google, porém, e encontrará uma montanha de relatos sobre a corrupção no período da ditadura militar. Os R$ 600 para estes militares pouco pesam em seu orçamento, o que lhes importa é a satisfação de ter passado a perna no governo, mesmo que temporariamente – quantas outras coisas jamais serão descobertas?

Vejam a ousadia de tentar o golpe, sendo que o governo que oferece o auxílio é o mesmo que roda suas folhas de pagamento, sendo portanto facílimo o cruzamento de informações. E quantos outros mais estão recebendo o auxílio indevidamente, sem que o governo tenha detectado? Com tantos escândalos, este é apenas mais um na história do Brasil, e acabará esquecido.

Me alegra que no Canadá a vontade de aproveitar-se indevidamente de mínimas situações não chegue nem perto disso. Um pedestre tem prioridade para cruzar a rua em relação a um carro que custou milhares de dólares. Objetos perdidos geralmente retornam às mãos de seus donos. Não há um número significativo de abusos ao auxílio emergencial daqui, pelos relatos da imprensa. Um exemplo simples, que retrata bem a diferença, é o de terem decorado o jardim (sem grades, claro) de uma residência de idosos de Toronto com dezenas de belos cataventos coloridos, provavelmente feitos pelos próprios moradores, para o último Dia das Mães. Fincados na grama por um simples ferrinho, passam-se os dias e eles continuam todos lá. Ninguém pega, ao menos que se note. Assim dá pra jogar.

 

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