Caudilhismo e democracia, a incompatibilidade insuperável
André Oliveira & Rodolfo Marques são colunistas do Jornal de Toronto
No livro Do bom selvagem ao bom revolucionário, o venezuelano Carlos Rangel descreve como o caudilhismo, movimento centrado na figura do homem forte e/ou do salvador da pátria, impactou negativamente o desenvolvimento da democracia na América Latina. Rangel chama a atenção para o caso argentino para contrapor a visão urbana e liberalizante de Domingo Sarmiento à concepção centralizadora e autóctone de Manuel de Rosas e de Juan Perón, cujas lideranças fortes pairavam acima do funcionamento das instituições democráticas.
Os poderes de Perón eram tão robustos que, ainda segundo Rangel, ele foi capaz de designar, antes de morrer em 1974, a esposa Isabelita, “ex-dançarina de cabaré”, e o obscuro e controvertido José López Rega, seu “secretário particular”, como sucessores no poder. Ambos acabariam derrubados pelos militares no golpe de 1976. A ditadura na Argentina durou até 1983.
A figura do caudilho, do homem providencial ou messiânico que supostamente vai derrotar as elites políticas para entregar todo o poder ao povo, é impulsionada por diversos fatores que favorecem o seu advento e triunfo. Um deles é a percepção pública de que o sistema tradicional de partidos não funciona e/ou está imerso em corrupção estatal sistêmica. Certamente, este foi o caso da ascensão do coronel Hugo Chávez na Venezuela, uma vez que os partidos AD e Copei se alternaram no governo durante 40 anos, sempre com governos marcados pela corrupção robusta e ineficiência econômica.
Outro fator reside no argumento de que a vontade do homem providencial coincide com a de toda população, como se a sociedade civil pudesse ter uma única e indivisível preferência política. Para lograr impor a pretensa vontade popular, o caudilho propõe, então, o enfraquecimento gradual, mas seguro, das chamadas instituições de controle horizontal, como, por exemplo, o Judiciário e o Ministério Público. Nada deve se interpor entre o povo e o grande líder, único e verdadeiro intérprete da vontade nacional.
Experiências recentes indicam que certos regimes políticos autoritários – conduzidos por líderes salvacionistas – não são um fenômeno meramente latino-americano. Os governos de Recep Erdogan na Turquia, Viktor Orbán na Hungria e Rodrigo Duterte nas Filipinas sugerem que a democracia ainda não foi capaz de criar salvaguardas suficientemente fortes para impedir que, depois de eleitos, líderes com perfis autoritários tentem erodir suas instituições.
Se estivesse vivo, Carlos Rangel ficaria seguramente contente ao perceber que a ideia de democracia se tornou universal, mas bastante espantado em constatar quão numerosos são seus inimigos entre nós.
De fato, é preciso mudar essa trajetória caudilhista e iliberal na América Latina e no resto do planeta. Parabéns aos autores pela análise.