Amar e mudar as coisas interessa mais

O cheiro do feijão exalava por toda a casa…

Ilustração de Valf.

Branca Sobreira é escritora e jornalista

O cheiro do feijão exalava por toda a casa. Daqui a pouco a panela de pressão ia chiar. Da cozinha a ouço cantar “ano passado eu morriiiiii, mas esse ano eu não morroooooo, tenho sangrado demaiiiiis, tenho chorado pra cachorro…”. A cantoria era desafinada e alta, como se eu não existisse. Pelo que lembro, existo, e estou no meu escritório trabalhando na próxima coluna do jornal. De mansinho, fui andando até a cozinha e a cena era hilária. Com fones no ouvido, Isabel mexia três panelas ao mesmo tempo, colocava sal no arroz, enquanto passava o bife. O cachorro a olhava rezando pra que alguma comida caísse do céu e com a língua para fora parecia estar rindo da cena também. Ela me viu e tomou um susto “Poxa, seu Bel, assim o senhor quais me mata”. Me expulsou da cozinha e disse que me chamaria quando o almoço estivesse pronto. Pedi para ela baixar o volume do show particular um pouquinho e saí.

Me retirei e no longo corredor da casa ainda sentia o riso no rosto quando me deparei com o porta-retratos, no velho móvel de madeira escura encostado na parede, a foto do meu filho mais velho. Era uma criança alegre, sorridente mesmo sem dentes. Usava uma roupa amarela, pois na época não sabíamos qual seria o sexo do bebê, então o enxoval foi comprado das variações de uma mesma cor. Amarelo claro, escuro, queimado, um bege pra variar. Ao fundo a cantoria continuava “tenho comigo pensado Deus é brasileiro e anda do meu ladoooo…”. Em que ano essa foto teria sido tirada? 63, 64? Ele devia ter quatro anos na fotografia. Eu tão novo já era pai, e de fato, me considerava um sujeito de sorte. Vindo do Ceará sem nada no bolso, em pouco tempo tinha um corcel na garagem, uma casa com jardim, geladeira cheia. Achava que a felicidade era dada por meus objetos e aquisições. O que eu sabia nesse tempo? Quase nada. Uma criança tendo outra. Quem diria que dez anos depois já estaria viúvo, criando três crianças sozinho. Naquela fase, sabia ter um coração selvagem, de raiva por estar em uma situação inesperada, solitária. Esse mesmo coração era onde Ana estava, e eu queria morrer também. Ela me deixou cedo demais. A turma do outro bairro toda viu o quanto a amei.

O mundo inteiro estava numa estrada ali na frente, e eu sem rumo, só pensava no punhal. Era Ana que me visitava todas as noites de branco, como uma noiva, e com o punhal pronto pra me levar pra não sei onde. Eu acordava banhado em suor, eu não estava interessado em nenhuma “tioria”, em nenhuma fantasia, nem no algo mais. Eu seguia na minha rotina. Trabalho, casa e no escritório em que trabalhava e ficava rico, quanto mais multiplicava diminuía o meu amor. Assim meus dias seguiam. Minha alucinação era suportar meus dias. Não posso dizer que fui um bom pai. Por isso, esse mesmo filho sorridente na foto desbotada, não falava mais comigo. Cerca de três anos paramos de nos frequentar, sem motivo aparente, muitas mágoas deixadas no caminho. Eu era apenas mais uma dessas pessoas solitárias das capitais, agora velho e arrependido.

Meu filho, Roberto, teve uma juventude rebelde, se meteu com uns grupos esquerdistas, foi preso, mas hoje tinha família, trabalho, responsabilidades, dívidas. Acho que até neoliberal era agora. Esses casos de dinheiro e de família eu nunca entendi bem. Meu filho nunca compreendeu o meu som, a minha fúria. E deveria? Não era o seu papel. Pensei em fazer uma ligação, chamá-lo para tomar uma cerveja gelada comigo, tinha coisas novas a dizer. “A minha história é talvez… igual a tua”. Eu sou como você. Ia confessar meus pecados a ele, mas ele não iria me perguntar por onde andei no tempo em que ele sonhava. Mesmo assim a resposta estava pronta na ponta da minha língua: “Filho, eu me desesperava”.

Olhei o telefone que ficava pendurado na parede do corredor, próximo à cozinha e com dificuldade disquei o número que sabia decorado. Chamou, chamou, ninguém atendeu. Fui até a geladeira então pegar aquela cerveja, que estava em meu pensamento. Isabel, olha pra mim e grita “o almoço inda num tá pronto NãÃO, SEU BEEL”. Ainda não estava completamente surdo, mas agora achava que tinha acabado de ficar. Ouvi o telefone, corri para atender, sem fôlego disse: “Viver é melhor do que sonhar, eu sei que o amor é uma coisa boa, mas também sei que qualquer canto é menor que a vida. Me perdoa?”.

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5 comentários em Amar e mudar as coisas interessa mais

  1. Que lindo Branca!
    Deus te conserve assim com essa sensibilidade que expressa nas palavras tão sabia e carinhosa. Parabéns, Deus te abençoe ricamente com saúde/#seu esposo também 🌷

  2. Sempre lindo e emocionante seus textos, Branca. Parabéns, e continua sempre escrevendo pra gente!

  3. O melhor é a gente se achar em trechos desse lindo conto . Eu amei. Adoro viver seus textos. Escreva muito mais

  4. Muito bom!!! Até me arrupiei em algumas passagens!!! Parabéns, branquinha.

  5. Helvia Sobreira Canovas // 17 de abril de 2020 às 5:54 pm // Responder

    Sua sensibilidade nos atinge a todos, seus textos nos encantam com essa beleza de redação. Parabéns, continue com essa sua inspiração diária.

1 Trackback / Pingback

  1. Loving and changing things matters more – VALF ILLUSTRATION

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