Acúleos

da série “Crônicas de vidas miseráveis”

Ilustração de Valf.

Valf é ilustrador e escritor

Não adianta. Ruindade não se aprende não. É mancha da alma. É sina nata. Doralice era assim. A descompaixão em pessoa. A disgrama em forma de gente. Era linda. Tamanha formosura parelha apenas com a fealdade de seus atos. Foi assim quando criança, foi assim quando mocinha. Foi assim até o fim de sua curta vida. O pai coitado, Seu Orlando, depois que a mãe morreu no parto, criou com dificuldade, porém com todo mimo, a mal-agradecida menina. Trabalhava pesado de sol a sol para a garota não precisar pegar nunca em cabo de vassoura, poder terminar o magistério e casar com um moço de bem. Mas anos e anos de desgosto, destrato e desmando fizeram fraco o coração do velho. A judiaria que fez com o noivo, o João Euclídes, moço bom e dedicado, foi de cortar o coração. O rapaz, que passara anos morando na capital estudando para se tornar doutor, engolia seco cada desaforo que ouvia e movia montanhas para agradar a destemperada noiva. Ela acabou com o noivado depois de ter gasto com bobagem até o último centavo do rapaz, fruto de uma herança deixada para ele. Totalmente desesperado, teve problema de nervos e acabou sendo internado num sanatório. Tanta ruindade junta assim só podia dar nisso. Castigo. Lombriga que subiu para a cabeça passou de boca em boca na versão do povo. Taenia Solium foi a explicação oficial do médico. Em meio à discussão se lombriga ou solitária teria sido o algoz, de certo ficou apenas a tristeza do cortejo fúnebre de um homem só. O padre foi o único na cidade a rezar por Doralice. Três coroinhas que o sacerdote teve que praticamente arrastar ajudaram muito a contragosto o coveiro a carregar as alças do caixão. O coveiro estava no enterro também, mas isso não conta. Sabe como é. São os ossos do ofício. Enterrada na pequena fazenda do pai, a cova nunca mais recebeu capina ou visita. O mato cresceu e tomou conta de tudo. E uma laranjeira nasceu no lugar que ficava o sepulcro de Doralice. O tempo se passou e anos depois o descompassado João Euclídes, o ex-noivo que saíra do sanatório, agora com uma imensa e desgrenhada barba, virou pedinte e fica aí gritando pela cidade afora. Enlouqueceu sim, mas não perdeu a erudição dos tempos da faculdade. Com a voz impostada, fica usando palavreado rebuscado, falando que Doralice virou árvore, cheia de frutos, folhas, flores e acúleos. E ele não deixa de ter certa razão. Decerto a laranjeira brotou do coração da moça, pois nunca se viu laranja mais azeda na face desta terra. Nem passarinho chega perto. Porém, quanto ao tal dos acúleos eu olhei no dicionário. João Euclídes está completamente errado. Acúleo quem tem é roseira. Solta com facilidade do caule, deixando apenas a beleza da flor. No caso da laranjeira, é espinho mesmo, que não quebra e está até o talo enraizado, que nem a ruindade de Doralice. João Euclídes insiste. Sobrevive fazendo geleia das laranjas que brotam lá no túmulo da moça. Eu mesmo tenho um punhado, que eu compro para ajudar. Fica guardado no fundo do armário. Ninguém aqui em casa come… 

Ilustração de Valf.

Este texto faz parte da série “Crônicas de vidas miseráveis“.

Sobre Jornal de Toronto (784 artigos)
O Jornal de Toronto nasce com o intuito de trazer boa notícia e informação, com a qualidade que a comunidade merece. Escreva para a gente, compartilhe suas ideias, anuncie seu negócio; faça do Jornal de Toronto o seu espaço, para que todos nós cresçamos juntos e em benefício de todos.

5 comentários em Acúleos

  1. Que lindeza, Valf!! Muito orgulho de você.

  2. Que lindeza, Valf! Parabéns pelo texto maravilhoso.

  3. Eta coisa ruim essa mulher! Amo seus textos!

  4. Patrícia Bettoni // 20 de junho de 2019 às 8:34 am // Responder

    Moço do céu… cê é bão mesmo, hein?

Deixe uma resposta

Descubra mais sobre Jornal de Toronto

Assine agora mesmo para continuar lendo e ter acesso ao arquivo completo.

Continue reading