A festa

A imagem era impactante…

Ilustração de Valf.

Valf é ilustrador e escritor

A imagem era impactante. Deitado em uma bandeja acobreada, o gigantesco peru reluzia. O tom marrom da pele perfeitamente tostada, o reflexo da gordura que escorria, a fumaça que saia da peça recém tirada do forno e parecia envolver e aveludar a ave por completo. Ao fundo, um cacho de belíssimas e opacas uvas verdes, ornadas com as folhas de parreira, era um respiro cromático, pensado metodicamente para contraste e ao mesmo tempo harmonia com a paleta de cores do galináceo. Para finalizar, a luz de cena. Dramática, dura, recortava e ressaltava certos elementos e escondia outros, imersos na penumbra. Não havia dúvidas, aquele não era um simples peru. Era sim a mais bela transcrição culinária de uma pintura de Caravaggio. Assim era a imagem impressa na capa de um livro de receitas que ficava na estante lá de casa. Na minha memória da época, sua lembrança só rivalizaria com a edição ilustrada do Decameron e com os desenhos da Trópico Enciclopédia Ilustrada em cores, com os quais dividia a mesma prateleira. Aquela visão, contudo, me perseguiria por vários anos.

Lembro que tempos depois, pela data de meu aniversário, pedi de presente para que minha mãe preparasse o peru para minha festa. Preparasse apenas não. Que reproduzisse exatamente aquela imagem da capa do livro. Dia de escola, não me demorei depois do sinal. Voltei no trote para tomar banho e poder esperar pelos convidados e é claro, pelos presentes. Na cozinha, os preparativos estavam a todo vapor. Minha mãe, com o livro em cima da bancada, conferia com minúcia a capa para não perder nenhum detalhe importante. Como a mesa não era grande, os convidados esperavam com o prato na mão. E então minha mãe entrou na sala de jantar, trazendo a esperada bandeja. Criança, meu campo de visão não permitia ver o resultado por aquele ângulo. Entre os panos de prato que segurava para não se queimar, todavia, pude notar que, estranhamente, a bandeja de cobre na verdade era uma travessa de vidro. Tenho a imagem viva, quase em câmera lenta, de quando minha mãe colocou o peru sobre a mesa. Choque. Não era um peru. Era um frango. Um reles e esquálido frango, meio que embrulhado em um papel alumínio queimado pela gordura escorrida. Na parte de trás, um cacho de uvas paulistas, aquelas vendidas em caixinhas de madeira, que, além de não ter as folhas, ainda carregavam o pecado de serem roxas.

Ilustração de Valf.

Não existem fotos daquela festa. Gostaria muito de ver a minha expressão na época. A decepção de quem observava o espólio da ruína. A carcaça carcomida que jazia em sua mortalha de metal estorricado e a enorme mancha de vinho que tingia a toalha de mesa emprestada por minha avó. Tudo isso salpicado por dezenas de papéis de brigadeiro amassados. Alguns deles cuidadosamente dobrados.

Nunca soube na verdade o que esperava quando fiz aquele pedido para minha mãe. Talvez desejasse uma epifania, uma revelação ou transcendência à primeira mordida. Um arroubo sensorial que nunca chegou. A imagem que tanto havia me capturado enfim era irreal. O tangível, esse sim, na forma implacável daquele fim de festa da qual me arrependo de não ter aproveitado, me havia ensinado algo valioso. Se usar de expectativa, use bem pouco. E de preferência, apenas no seu prato.

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