Tens direito a não ter direitos

“É para condenar ou absolver?”

"A Justiça", do escultor Alfredo Ceschiatti, em Brasília. Foto: Filipo Tardim.

José Francisco Schuster é colunista do Jornal de Toronto

Desde pequeno me dei conta de que meu destino era trabalhar com a informação. Mas, por sorte, me dei conta de que há duas maneiras de lidar com ela: o interesse individual ou o coletivo. Escolhi o Jornalismo, onde o objetivo é apresentar todos os lados de um fato para que o receptor forme livremente sua opinião a respeito – as profundas distorções quanto a isto na imprensa brasileira contemporânea rendem uma tese. Não optei, portanto, pela Publicidade e Propaganda, apesar de que fazemos, juntos com eles, as disciplinas da primeira metade do curso de Comunicação Social – porque depois disso o objetivo deles é deterem o monopólio da verdade.

Já meus pais insistiam para que eu fizesse Direito, e cheguei a concluir alguns semestres. Em seguida vi, porém, que não era para mim. Como na Publicidade e Propaganda, o advogado de cada lado se arvora como dono da verdade, colocando sua opinião à venda mesmo que saiba que não é a verdade. Um assassino brutal confesso sempre terá um advogado que o defenda e que fará de tudo para ocultar as barbaridades do seu cliente. O sui generis é que, condenado o réu e comprovada toda a mentira que foi construída para defendê-lo, o advogado não é condenado como cúmplice do crime!

Das minhas aulas de Direito, recordo que ele foi criado não pelos gregos, pensadores, mas pelos belicosos romanos. Tudo começou com o direito costumeiro, baseado nos principais costumes dos cidadãos mais influentes; ou seja, já começou determinando-se que a plebe não tinha garantia nenhuma de direitos. Também foram criados instrumentos de aplicação do direito aos estrangeiros, o que contribuiu em muito para a expansão das fronteiras de Roma e para a dominação de uma grande quantidade de povos. O primeiro texto legal, a Lei das Doze Tábuas, previa a escravidão e a pena de morte por simples furto, e o poder de vida e morte do pai sobre os filhos, por exemplo.

Com o tempo, foi criada toda uma teatralização do Direito, sempre com o objetivo de convencer que as elites são as únicas dignas dele. O uso de togas e até perucas é mantido até hoje, e o terno-e-gravata obrigatórios são uma tradição justamente para afastar da Justiça os que não são bem aquinhoados. Some-se a isso o tratamento de “doutor” e “excelência”, para separar estes supostos seres superiores da plebe. Para completar, o texto jurídico tem que ser o mais rebuscado possível, absurdamente longo, com palavras raras e expressões latinas, justamente para aquele que não pertence ao clube não entender por que lhe roubaram seus direitos, mas mesmo assim achar que “o doutor deve ter razão”.

Foto: Arek Socha.

Ao contrário do Jornalismo, onde a regra na qual os professores insistem é do “curto, claro e simples”, na faculdade de Direito eram exigidos textos o mais longos possível, não importava o quão desconexos fossem – alguns colegas mais ousados chegavam a incluir no meio de seus trabalhos impropérios aos professores, que nem se davam conta deles na superficial correção que faziam. E uma secretária de juiz (cargo ocupado por formados em Direito) me confessou que quando recebia um processo para fazer uma sentença (o juiz, na verdade, só revisa), perguntava apenas “é para condenar ou absolver?”, pois sempre se encontram leis que sustentam as duas hipóteses.

Aos que dizem que os dois lados têm direito a advogados (e aqui meus cumprimentos a aqueles heroicos que trabalham em defesa dos desvalidos), como contrapor a força, por exemplo, de um advogado de um trabalhador demitido ou de uma ONG ecológica contra um batalhão de advogados regiamente pagos por uma poderosa multinacional?

Há, por fim, a questão dos juízes, que o Estado se propõe a bem remunerá-los para que não se corrompam. O problema é que, desta forma, seus contatos sociais acabam sendo primordialmente com as elites, o que tende a gerar uma distorção de perspectiva. Passam a irritar-se simplesmente se quem busca o direito não está vestido como mauricinho ou patricinha, e não entendem a fome de quem rouba uma galinha. Por outro lado, um poderoso passar a ser proprietário de terras indígenas ou quilombolas não tem nada de errado, porque foi tudo feito dentro das brechas que a lei permite. Os juízes acabam também manipulando a lei a seu próprio favor, dando a si próprios polpudos aumentos e benefícios, em nome da independência do judiciário.

Acaba vencendo, via de regra, o princípio do “direito adquirido”, que é o de não se alterar nada, o “sempre foi assim”, por mais danoso à sociedade que isto seja. E como os poderosos perpetuam-se no poder, a eles também se eternizam os direitos. À maioria, resta apenas as frases de efeito com pompa e circunstância das excelências a convencê-la de que não tem direito a nada.

Sobre José Francisco Schuster (80 artigos)
Com quase 40 anos de experiência como jornalista, Schuster atuou em grandes jornais, revistas, emissoras de rádio e TV no Brasil. Ao longo dos últimos 10 anos, tem produzido programas de rádio para a comunidade brasileira no Canadá, como o "Fala, Brasil" e o "Noites da CHIN - Brasil". Schuster agora comanda o programa "Fala Toronto", nos estúdios do Jornal de Toronto.

2 comentários em Tens direito a não ter direitos

  1. Para os operadores do direito, advogados, está cada dia mais difícil atuar. O judiciário está cada vez mais lento. A juntada de uma petição pode demorar de três ou mais meses. Salvo melhor juízo, via de regra é algo muito simples, pegar o processo, juntar e colocar concluso. Essa simplicidade, tornou-se tão difícil, com a simples alegação de falta de pessoal. Cada juiz tem três assessores, secretária, estagiários, fora o escrivão, atendente judiciário, estagiários. Digo, que o judiciário tornou-se vicioso na arte de reclamar das pessoas que buscam honestamente valer um direito.

  2. Quando criança e vinha a clássica pergunta, “o que vai ser quando crescer?”, meu pai não gostava que disséssemos: advogado. Na simplicidade – mas na integridade também – dele, ser advogado era sinônimo de ser “ladrão” ou “assassino”… como bem disse o ilustre jornalista, o advogado que defende o assassino brutal nunca é condenado, nem aquele que defende o pior dos ladrões… meu pai tinha toda razão em sua sabedoria…

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